Relembranças

Mesmo cenário: um quarto de hospital… a UTI. Tudo em alta tecnologia, equipamentos de última geração. Uma atividade frenética! O tempo todo essa agitação… e, vez por outra, alguém entra no quarto, fala alguma coisa para ele, mesmo sabendo que ele não pode responder… não tem como reagir. Realmente, ele não entende o que estão dizendo. Ele só sabe que está lá, naquele hospital, naquele quarto de ‘hotel dos enfermos’, sozinho. Sai uma visita… as pessoas têm bastante carinho por ele, mas ele não tem como fazer um único gesto em retribuição. Às vezes ele devaneia, volta à sua infância… lembra-se daquela cidadezinha do interior… em sua casa havia um galinheiro, um cachorro chamado Teco, passarinhos presos na gaiola. A cidade não tinha calçamento. Também não tinha água corrente, nem esgoto… cada casa era como uma unidade autônoma: tinha seu poço, com manivela e balde, de onde era retirada a água para beber e cozinhar… tinha a cisterna, onde eram jogados os dejetos humanos, outro poço profundo, e uma laje de concreto tapando sua boca… havia algumas árvores frutíferas e também as galinhas. Havia um grande gramado, onde as roupas eram estendidas para corar, que se chamava ‘quarador’ (ou coradouro)… não tinha luz elétrica… apenas lampiões a querosene, que chamavam de ‘Aladim’, a lâmpada maravilhosa do gênio oriental, e ele se lembra que era feliz com seu pai e sua mãe… eles eram felizes naquela simplicidade de dar dó…

Aquela pequena cidade era como a extensão de sua família, e ele cresceu assim, lembrando dos detalhes dessa vida: as brincadeiras da molecada, as obras da estação ferroviária, as corridas desenfreadas das bicicletas na descida do aterro, onde colocariam os trilhos do ‘trem de ferro’, os carrinhos de ‘rolimã’ (uma prancha de madeira, com duas traves como eixos, e rolamentos de caminhão para servir de rodas), as longas horas colando folhas de papel de seda em dois gravetos de bambu, cruzados, para empinar papagaio… tudo aquilo havia na pequenina e simples sociedade de então.

Ele se lembra disso e, ao mesmo tempo, essas memórias são interrompidas pelas falas das pessoas, que entram e saem do seu quarto, mergulhado na penumbra por grossas cortinas cheirando a mofo… e aquele silêncio que ficava quando todos saíam, deixando-o só com seus pensamentos… um silêncio tão grande que calava até mesmo os seus pensamentos, as suas lembranças… um silêncio ensurdecedor que transforma tudo num vazio absoluto… e, de repente, retorna algum barulho, alguma fala, alguma presença que ele não consegue perceber ou discernir… seus olhos não veem… estão voltados para dentro da sua própria alma. Era através da sua alma que ele enxergava seu próprio passado. E assim vão se seguindo os primeiros anos de escola, aprendendo com sua mãe o ‘beabá’, aprendendo a ler, a escrever, a fazer números e contas, a entender que aquela cidadezinha não era o mundo dos seus livros. “Mas que mundo estranho é esse que eu ando… ando… ando… e não saio do lugar… Como pode um mundo ser tão grande como eles dizem?…” E o passado?… o passado de uma criança é aquilo que ele fez no dia anterior, em dois dias antes, em uma semana antes… é aquilo que cabe na sua pequena memória, ainda em formação, em construção.

E assim ele vai aprendendo, e vai se transformando em um adolescente. E, de repente, nesse turbilhão de memórias, ouve-se um barulho! e todos correm para o leito dele, o Rúben… “aparentemente, alguma coisa está errada. Será que estou morrendo?” e vêm todos correndo para cima dele… e ele perde a consciência… os médicos estão muito agitados, a família foi chamada; ele teve mais uma parada cardíaca – parada cardiorrespiratória – e foi ‘ressuscitado’… deram-lhe medicamentos para que ele não parasse de viver. “Mas que viver é esse? que viver é esse que não permite que um ser interaja com seu próprio meio?”… Os filhos conversam sobre essa situação. “Como nosso pai foi chegar a esse ponto? Como ele conseguiu fazer tanta coisa na vida e agora estar aí, como um fardo abandonado, e nós não conseguimos mais nos comunicar com ele? Pai! Pai! Você está nos escutando, pai?” …só o silêncio… “Pai, nós viemos aqui te ver…” um beijo… um abraço… uma lágrima escorre, discreta, disfarçada, em sua face… tão disfarçada que ninguém se apercebeu disso… mais nenhuma reação, e tudo mergulha de novo na escuridão e no silêncio.

Passam-se os dias… passam-se as semanas… e aquele estado letárgico, inerte, não se modifica. O problema cardíaco foi superado; porém nenhuma possibilidade de cura. Nenhum resquício de vida se manifesta naquele corpo semivivo… os filhos já não o veem com tanta frequência, mergulhados que estão nas suas próprias vidas, atribuladas, corridas, tentando conquistar seus próprios espaços nesse mundo… e o pai fica lá… aos poucos, de dentro desse ser, começam a voltar seus pensamentos, as memórias… tudo muito espaçado… sem concatenação… sem relação com a realidade ao seu redor… apenas pensamentos que passam por aquela mente, aparentemente vazia… e ele começa a perceber, novamente, a presença das pessoas… começa a ter noção daquele Novo Universo em que ele se encontra não se sabe há quanto tempo. Seriam semanas? Seriam meses? …talvez anos…. Pouco lhe importa o tempo… nada significa.

E vem uma enfermeira lhe dar banho, vem outra e lhe injeta alguma coisa na veia… falam algumas palavras… dizem seu nome. “Olha, senhor Rúben, nós vamos dar-lhe um remédio agora, certo? Fique calmo, que vamos cuidar do senhor”… e lhe viram e reviram, tiram-lhe a roupa, lavam-no como a um bebê, passam óleos, pomadas… passam-lhe cremes para não formar escaras… lavam-lhe o rosto, escovam-lhe os dentes, sem que ele tenha que movimentar um só músculo! Limpam-lhe as orelhas, cortam-lhe os cabelos… e ele ali, como um boneco de pano, sendo movimentado para lá e para cá… tiram-lhe daquela cama e colocam-no em outra maca para fazer uma radiografia… uma tomografia… depois trazem-no de volta.

Sua vida fica restrita a esse movimento incessante que acontece ao seu redor. Ele se tornara um espectador de si mesmo, com alternância de algumas memórias e, às vezes, um silêncio que recai sobre elas… absoluto… um limbo, um vazio de pensamentos… uma solidão que não dói… uma solidão que não se sente…

Mas alguma coisa faz com que ele desperte desse estado de catarse e volte a perceber a presença de alguém… ainda que apenas por um momento. Agora é um parente que veio visitar-lhe. E traz consigo alguma coisa: um bolo, salgadinhos, refrigerantes… outros chegam e cantam “parabéns a você!”… “é o seu aniversário!”, dizem… “viemos comemorar com você!”, justificam-se… comem, bebem, abraçam-se, beijam-se… conversam… fazem de tudo para fingir, ou parecer que é uma situação normal… uma família. “Estou perto de uma mesa… mas lá só tem um corpo… inerte… o meu!”.

E logo essas pessoas despedem-se e vão-se embora, e volta aquele vazio interminável… apenas aquele tempo que não transcorre… nem mesmo as frações de segundo são desperdiçadas para mostrar que o ciclo da sua vida é uma eternidade.

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por João Carlos Figueiredo Postado em Capítulos

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