A Eutanásia

No quarto do hospital, as pessoas conversam agitadamente a respeito da decisão sobre desligar os aparelhos do pai… do avô que está ali na cama, imóvel e, aparentemente, sem saber de nada. E cada um se lembrava de algum detalhe do passado… memórias sobre como ele era quando estava bem de saúde, como era a dinâmica da sua casa, como ele gostava de viver… como ele lutava por participar de tudo, da vida em família… das discussões políticas… das questões sociais e ambientais… de tudo! E, de repente, aquele terrível choque, aquele baque decorrente do dano cerebral… a hemorragia… o AVC!

Lá estão, filhos e netos, discutindo como seria difícil tomar uma decisão como essa! Mas, enfim, todos concluem: “mas coitado… ele está aqui, nesse hospital, há tanto tempo… desse mesmo jeito, imóvel, inútil, sofrendo, com dificuldade de digerir, mesmo que tivesse apenas nutrição parenteral1, incapaz de se comunicar… tornou-se um ser em estado vegetativo… um ser inerte…”; alguém chegou a afirmar “eu não gosto disso… é muito difícil decidir… mas, por outro lado, estamos fazendo um enorme sacrifício para manter nosso pai… nosso avô vivo, sendo que ele não compartilha mais nada conosco… ele se tornou um incômodo… enfim, é para o seu próprio bem”. E aqueles argumentos vêm para justificar aquilo que ninguém queria fazer, mas todos almejavam, no fundo da sua alma… todos queriam acabar com esse sofrimento, que era de todo mundo, enfim.

Depois, essa discussão vai aos poucos se tornando mais branda, menos tensa, menos constrangedora, e todos acabam por se conformar com a decisão consensualizada de desligar os aparelhos. Enquanto tudo isso acontece na mente daquele ancião, milhões de imagens voltam em cena… e ele pensa “eles vão me matar! Vão por fim à minha vida… justamente agora que eu sei… que estou consciente… eu só preciso voltar a me movimentar… preciso me comunicar com eles… preciso tomar conta do meu corpo novamente… pois sei que estou vivo… sou capaz de me lembrar de detalhes da minha vida… minha consciência voltou… e quero voltar a viver… não posso morrer agora!” …mas aqueles que estão de fora daquele corpo não sabem que ele não quer morrer. O que eles pensam é que, de fato, ele não tem consciência de mais nada. É apenas um organismo inerte que está lá, sem consciência, sem vontade, sem capacidade de reação… um morto-vivo, “um estorvo”…

Então, na medida em que essa situação se evidencia, na dicotomia entre o que está na mente daquele moribundo e o que está em discussão em torno dele, chega o médico. “E então, família, vocês chegaram a alguma conclusão? Vocês sabem o que querem fazer? É preciso decidir logo, pois não poderemos mantê-lo para sempre neste leito do hospital. As despesas estão elevadas para vocês, eu sei, e faltam leitos para outros doentes. Se preferirem, podem levá-lo para casa, deixá-lo aos cuidados de enfermeiros. Pode ser que ele viva algum tempo mais…”. Porém, o filho mais velho diz: “Não, doutor. Nós decidimos… nós optamos por desligar os aparelhos”. Isso fez com que aquela mente despertasse, momentaneamente, daquele torpor… e ficar desesperado… O ancião estava tão angustiado que pensou, quase gritando, “eu não quero morrer!”… mas Rúben não consegue mexer uma pálpebra.. ele não consegue esboçar um sorriso… ele não consegue mover nem mesmo um dedo… ele não consegue fazer nada para dizer “olha, eu estou aqui! E estou vivo!”

Nesse momento, Rúben se recorda daquela mensagem que captou antes de sofrer o infarto: “a vida é uma sucessão de perdas…”. Sim, parecia claro, agora! E essas perdas não são apenas físicas, mas éticas, morais, sentimentais, familiares… tudo se tornara mais nítido em sua mente… ele estava perdendo o afeto de sua família, tornara-se um fardo, um estorvo, um objeto descartável, inútil, desprovido de sentimentos, pronto para ser excluído do meio familiar e ser esquecido como algum objeto deixado em alguma estação de metrô…

Nesse momento, sua consciência se apagou… deixou-se levar pelas ondas de pensamento como um fluído que se esvanece no ar, levado pela brisa delicada que exala das profundezas e segue, sem controle, pela atmosfera, sabe-se lá para onde, como o néctar de uma fruta a se transformar em mel… ele se fora para longe deste mundo…

Um ser sem corpo flutua no espaço, como um sopro a empurrar uma pétala, que se balança, sobe, desce, é levada por uma corrente de ar e se perde no infinito… Rúben já não percebe seu corpo, mas movimenta-se conforme sua vontade, percorrendo espaços em frações de tempo impossíveis de se mensurar.

O que lhe move são os pensamentos, e ele os segue sem esforço, sem cansaço, sem a percepção do espaço percorrido. Basta imaginar a cena e Rúben está lá, torna-se o próprio cenário e os objetos que o preenchem. Uma sensação de leveza, de fluidez, de ausência de peso e mesmo do ar a dificultar os movimentos.

Seus olhos, bem como seu corpo, não existem, e mesmo assim ele se sente inteiro, pleno em corpo e consciência, pois interage com aquilo que lhe parece outra dimensão do espaço-tempo, que ele desconhece. Tudo é um só fluído, mas cada qual tem sua forma, única, diferenciada, coisas, seres e espaço com sua personalidade…

Não precisa de esforço para ‘ver’, ‘mover-se’, ‘sentir’, pois Rúben é pleno Ser naquele espaço em que nada se dissocia do resto. Por mais incompreensível que lhe pareça, ele não consegue se diferenciar do que está ‘fora’ de sua própria dimensão.

Tudo e Um se confundem, porém mantêm diferentes aspectos, sensações, cores, temperaturas, densidades, formas… e, no entanto, nada lhe parece estranho, como se sempre tivesse estado ali, interagindo permanentemente com todo o Universo ao seu redor…

Aos poucos, tais sensações se afastam e ele adormece…

1Nutrição parenteral (para – além do, ènteron – intestino) – administração, por via endovenosa, de nutrientes como glicose e proteínas, bem como água, eletrólitos, sais minerais e vitaminas. (Alimentação por sonda, em linguagem coloquial) [Wikipedia]

por João Carlos Figueiredo Postado em Capítulos

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