O mistério profundo e os outros ‘eus’
Meu amado e fraterno amigo,
Recorro a este raro expediente pois sei que estás ansioso por compreender os fatos recentes que levaram Rúben à transição. Seu tempo ainda não se cumprira quando veio a falecer, e quero crer que ele sabia o que estava por acontecer a seu espírito soberano. Em sua generosa compreensão, estou certo de que aceitou seu destino com resignação, embora sofresse com o fato de acreditar que não poderia cumprir sua missão. Porém, de fato, ele a cumpriu, como saberás.
Rúben nunca foi de reclamar de dores e sofrimentos… durante cinquenta anos trocamos mensagens herméticas pelos meios que você bem conhece, buscando evitar que outros interceptassem os mistérios profundos que ocultam a vida de nossos avatares. Sabemos que esses conhecimentos precisam ser merecidos antes de se tornarem apropriados àqueles que buscam a Verdade. Rúben, certamente, era um deles e vislumbrou sua transição, e preparou-se para o grande momento, no que foi possível diante de seu estado físico e mental.
Pouco antes de Rúben se desagregar deste mundo, recebi uma mensagem inusitada: “venha me ver agora”, dizia, simplesmente, a mensagem que recebi. Sabia que era dele porque o vira recentemente, e compreendia que seus segredos estavam ameaçados pela situação crítica em que se encontrava, e como ele estaria preocupado com isso.
Fui imediatamente ao seu encontro, mas evitei um contato direto, preferindo nossos recursos metafísicos, no santuário de nossas mentes. Lá estava ele me aguardando, perplexo diante do avanço rápido da doença que o acometia, preocupado com a preservação e a transmissão dos ensinamentos sagrados que lhe foram confiados.
Procurei confortá-lo, ciente de que jamais trairia a Causa ou deixaria explícito aos não iniciados qualquer segredo que não pudesse ser revelado. Conversamos longamente, como há muito tempo não fazíamos, e percebi que Rúben continuava inquieto e preocupado. Por fim, disse-lhe: “podes confiar em nós, caro amigo, pois sabemos o quanto é difícil manter a consciência em situações como essa. A distância entre a realidade humana e o espaço esotérico é tão pequena quanto a espessura da página de um pergaminho oriental. Estamos atentos e te daremos todo apoio durante tua longa jornada…”
Dito isso, sua imagem se esvaneceu nas brumas da memória, deixando aquela fragrância tradicional que o acompanhara por toda sua vida, perceptível a poucos. Rúben se fora, mas ficara a sensação de que ele voltaria em breve. Com certeza, não ficara tranquilo.
“O pensamento lógico não pode ser usado para se alcançar a Compreensão. Apenas com a sensibilidade e a pureza da não-mente se pode conquistar a Verdade Eterna. Busca-a e encontrarás”!
Este foi nosso último encontro antes de sua transição…
Depois das cerimônias de cremação, passei alguns dias meditando acerca daquele breve encontro e dos segredos que nosso amigo teria para nos revelar. Porém, eu deveria aguardar que ele me chamasse novamente, pois o tempo, fora das dimensões humanas, não segue as mesmas regras que nosso pequeno sistema solar estabeleceu para os humanos. Além das fronteiras terrestres não existe ‘tempo’ nem ‘espaço’, pelo menos, não como o concebemos em nossa limitada percepção humana do Grande Universo Metafísico.
Fui despertado de um sonho estranho quando Rúben voltou a me procurar. Na sutileza da percepção extrassensorial que nos aproxima a todos do outro lado da Vida, fui chamado pelas palavras secretas que nos foram reveladas para compreender que era um dos nossos avatares quem me chamava. Era Rúben, em sua identidade espiritual. Sua mensagem era clara e me dirigi ao Sanctum1.
Assim, naquela fração de tempo em que mantivemos contato, Rúben relatou suas angústias e aflições no período que precedera seu afastamento físico de nossa fraternidade. Cada instante me foi revelado e compreendi o quanto fora testado pelos seres etéreos antes de se extinguir a chama que o mantinha em nosso estágio de vida.
Finalmente, deixo-te um texto escrito por Rúben, em algum momento de perplexidade diante de sua própria vida, que demonstra seu desconsolo para com os seres humanos, em sua mediocridade enquanto apegados à vida material, para tua reflexão e conclusões…
“Qualquer dos meus dias”
Hoje, serei um pássaro, de grandes asas brancas e porte majestoso, a flutuar sobre seus mundos alados, placidamente, mas afastado o bastante para não perceber os detalhes desta vida, que a tornam monótona, medíocre e mesquinha.
Apenas silhuetas e sombras me interessam, a povoar as paisagens: edificações e arruamentos, pelos quais se movem veículos, carregando cérebros e mentes, incessantemente, à busca de transformar o Paraíso herdado de suas sagradas religiões.
Sigo, porém, mais alto: não quero sentir-me vinculado a esses comprometimentos… Agora, percebo apenas luzes, pedras preciosas, contas coloridas de um imenso tesouro, desconhecido dos homens que nele habitam. É o silêncio que me sufoca: ensurdecedor, em meus incessantes pensamentos. Busco a Paz, transpondo as nuvens, imensos flocos pairando pelo espaço…
Percebo o mundo em camadas… abaixo, entre os vãos das nuvens, o chão dos homens, ora recortado em geométricas formas cultivadas, ora ainda preservando alguma natureza em sua desordem estética, ora pontilhado de civilização e de pecados… acima, novo teto de nuvens comportadas, pairando como carneiros, agrupados e ordeiros, deixando apenas réstias de um azul profundo e infinito.
Estou no Éden… uma incontida beleza me preenche e me confunde. Serei, ainda, um pássaro? Nada sou. Incorporo-me à totalidade do Universo. Sou Deus! Sou levado para além de minha própria consciência. Uma profusão de cores… um turbilhão de formas desconexas… qual um caleidoscópio…
Que foi feito de meu Shangrilá? Sou um pensamento… uma ideia fixa, parada, como um filme emperrado. Sou a cena que não se move, sem sentido, sem contexto… Seria assim a Morte?
Desperto em minha cama, frustrado e solitário. No rádio, o Concerto nº 1 de Max Bruch, com Yehudi Menuhin.
Definitivamente, não sou um pássaro. Minha rotina impele-me para a vida… Seria assim a Vida? Talvez um mero pesadelo… Pássaros têm pesadelos? Serei eu um pássaro sonhando em ser… humano?
O chuveiro me desperta; lembro-me da reunião das 9:00… preciso finalizar os preparativos: pastas, gráficos, relatórios… A sala está confirmada? E os participantes?
Preciso organizar o café para os visitantes…
Escovo meus dentes, pensado no bico do pássaro…
Sigo meu ritual profilático. Ao sair do banho, penso nos intermináveis compromissos da semana: centenas de e-mails a responder, telefonemas, reuniões, formalidades, troca de cartões, atas e outros afazeres dos homens sérios na sociedade dos negócios.
Preparo meu café da manhã, sem fome e sem vontade:
leite com cereais, frutas com mel… Ainda bem que não como insetos nem minhocas! Creio que não me daria bem com a dieta dos pássaros… Leio as manchetes do dia… qualquer dos meus dias…
“A Bolsa permanece em queda…”
“O dólar continua em alta…”
“Pinochet e Médici não serão julgados pelos seus crimes…”
“O preço do petróleo ameaça as economias emergentes…”
Seremos emergentes?
“A paz ameaçada no Oriente Médio…”
Talvez uma nova guerra nos desertos, para consumir o excedente obsoleto dos armamentos produzidos pela indústria bélica americana… mais uma ‘guerra controlada’, supervisionada pela OTAN e pela ONU, com os protestos de praxe e o repúdio diplomático e inútil dos países do Terceiro Mundo…
Seremos do Segundo Mundo? Que mundo é esse, afinal?!
Desligo a televisão. Visto-me apressado, mas sem me descuidar dos detalhes: o perfume, a gravata, o relógio… Já na calçada, as pessoas passam sisudas, apressadas, mal-humoradas, atropelando-se sem se cumprimentar, sem desejar um ‘Bom dia!’ como faziam nossos antepassados, antigamente…
Sorrisos? Nem pensar! Apenas amanhece e já levamos conosco as tensões de toda uma existência descuidada. Para que?
Cá estou, acomodado em meu lugar, na janela do ônibus, fones de ouvido, atento a mais um concerto, evitando o diálogo com meu companheiro de viagens, meu vizinho de jornadas, meses a fio… quase sem nos conhecermos de verdade… Longos minutos a atravessar minha cidade enfileirada, congestionada… Carros a se engalfinhar em corridas, cada um querendo ganhar a posição da frente, trocando incessantemente de fila e de lugar, até voltar à mesma situação em que se encontravam.
As mesmas ruas, os mesmos outdoors…
Finalmente em nosso destino, deixamos os ônibus aos tropeços, apressados por alcançar os pés das escadas rolantes, que nos levarão a todos aos mesmos lugares, todos os dias. Agora já nos reconhecemos, alguns… Uns até se cumprimentam! Monossílabos formais, algumas gentilezas… “um cafezinho?”
Já em minha mesa, um toque de humanidade: as fotos de meus filhos e netos, o arranjo de plantas, o Feng Shui… O dia passa, como de costume. A sensação de andar em círculos, de correr atrás do rabo como um cão abandonado…
Mais gentilezas, mais formalidades, algumas delicadezas, muitas falsidades. Muita encenação para delimitar o território.
Os cães mijam para marcar os seus domínios… Será que devo mijar ao redor de minha mesa?
O relógio parece não ter mais pressa… E cada um trabalha para não ter que olhar as horas… Enfim, o almoço! Fofocas de bastidores… “Quem subiu?” … “Quem caiu?”
Quanta hipocrisia… quanta mediocridade!
De volta ao bunker e à luta por se mostrar, cada um, mais importante… mais insubstituível nos negócios que não são seus…
“O que você vendeu hoje?”
“A minha Alma!”
E o dia segue… e a vida se esvai como a areia da ampulheta… Amanhã é só virá-la novamente, e tudo volta a se repetir…
Cá estou eu, de novo em minha cama, pensando na aventura de meus sonhos… Volto a desprender-me de meu corpo e escolher um novo bicho… uma cobra? Não, já rastejei por demais em minha vida! Um tubarão? Talvez… atemorizando os oceanos…
Não. Serei apenas uma semente, daquelas quais pequenas plumas, que o vento levará não sei para onde e – quem sabe? – germinar… sem consciência… sem retorno… apenas por viver…
1Sanctum: lugar sagrado de meditações e encontros entre os membros da “Grande Fraternidade Branca”, espécie de conclave de mestres espirituais “edificado” (concebido) no espaço esotérico por um dos avatares da AMORC – Antiga e Mística Ordem da Rosa Cruz”.
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