Reminiscências do amanhã

Perdi minha vida no cotidiano: nele deixei de viver e assumi o papel mais medíocre de qualquer ser humano: o de interpretar-se a si mesmo! Olho meu passado e vejo quantas encruzilhadas me cercaram, afirmando: fuja! Corra! Afunde-se na ilusão!… pois então eu me acovardei e segui em frente… teria sido diferente se eu tivesse escutado a voz de minha inconsciência? Inúmeras são as possibilidades quando despertamos para a consciência… morrer é apenas uma delas. Mas podemos ser atores de nosso próprio papel nesse teatro da vida. Podemos ser a musa da inspiração, desprovida de um corpo… podemos apenas nos entregar à luxúria dos desejos insaciáveis até morrer de sífilis… podemos, porém, nos entregar à vida… e viver da mediocridade que mantém a humanidade, que preserva as sociedades, falsas, dementes, absurdamente inúteis!

Passei meus quase setenta anos acreditando que haveria um mundo melhor, seja na ideologia da juventude, seja na imaginação do artista, ou apenas no deixar que a vida cumpra seu papel de tornar todos os seres humanos iguais em mediocridade… hoje, quase decrépito, quase inútil, vivendo de sonhos e ilusões perdidas, só percebo que  vivi inutilmente, que tudo poderia ter sido feito apenas por deixar de me ocupar com o vir-a-ser… aqui estou, consciente de que trilhei meus caminhos, mas nada deixei para aqueles que me sucederão nessa imensa roda da vida que nos une e separa…

O que virá depois de mim? o que haverá de subsistir desse mundo medíocre e enfadonho, senão a frustração de não ter sido nada além de um ser-vivente, um ser-ciente, um ser-demente? Sim, sou enquanto estou vivo, mas nada serei quando meu corpo tiver se transformado em cinzas, não importa onde sejam elas depositadas depois de minha transição… na verdade, tanto faz viver ou morrer, lutar ou entregar-se, combater as chagas do mundo ou fazer parte delas… tanto faz Ser ou não Ser!

Eu me sinto só…

Tenho 68 anos e vivo longe de minha terra natal… meu “furusato”…

Aqui não (re) conheço ninguém e ninguém me (re) conhece…

Poucos sabem quem sou, o que aprecio, que valores direcionam minha existência… e também pouco me importa que me enxerguem no meio dessa multidão…

Às vezes caminho pelas vias dessa grande cidade, admirando as obras do grande arquiteto, mas não vejo nada, senão prédios, concreto, paisagismo e urbanidade…

Curioso: Urbanidade! Essa palavra me traz significados talvez desconhecidos pelos habitantes dessa metrópole incrustada no meio do Cerrado… para mim, Urbanidade me traz à lembrança o respeito entre transeuntes, habitantes do mesmo espaço geográfico, independentemente de classes sociais ou meios de locomoção. Porém, não é isso que percebo nas inter-relações sociais de seus habitantes.

Até compreendo que, em uma megalópole como São Paulo, os seres que lá habitam tenham perdido a noção de Urbanidade. No entanto, Brasília tem apenas 58 anos! Praticamente uma criança no meio dessa imensidão territorial do Brasil Central.

Essas reflexões me trazem ao passado, nos anos 1950-60, quando essas terras ainda eram virgens do contato “civilizado” das populações europeizadas pela mordaz colonização. Aqui habitavam somente indígenas… chegar a este local seria uma grande aventura…

No entanto, nesses pouco mais de meio século, conseguimos dizimar a vida silvestre e arrasar a biodiversidade que sustenta esse grande espaço geográfico que, por sua vez, sustenta o Brasil. Pouco resta do Cerrado em tão pouco tempo da civilização qua aqui se instalou.

Nesse sentido me encontro aqui, solitário e desolado perante o futuro dessa civilização que se diz “inteligente”. Certamente não somos tão inteligentes assim… basta constatar que viviam nessa região povos “bárbaros”, selvagens que remontam a um milhão de anos! Onde estariam esses vestígios de humanoides que aqui viveram em paz?

Tudo isso são fatos comprovados pela Ciência, pela Antropologia, pela Paleontologia, pela Arqueologia, pela simples leitura das reminiscências preservadas nas ranhuras geológicas ainda não tocadas pela civilização contemporânea….

O que restará dessas terras daqui a cinquenta anos? Daqui a cem anos? Esses prazos são tão exíguos quanto a nossa memória, ou nossa curta existência e, no entanto, somos incapazes de refletir acerca do futuro daqueles que herdarão este legado.

Nada direi sobre as opções humanas nesse curto espaço de tempo de minha própria vida, pois sei exatamente tudo o que aconteceu ao meu redor em tão pouco tempo de vida… porém, causa-me surpresa, desconforto, tristeza, melancolia, desencanto, pavor… saber que nada pudemos fazer para preservar a vida para nossos descendentes… que o mundo que herdarão meus netos será muito pior daquele que herdamos de nossos próprios pais, ainda que, nesse curto período de vida tenhamos superado duas guerras mundiais e inúmeros conflitos regionais… ainda que, em menos de cem anos de História, tenhamos mudado todos os conceitos da antiga civilização europeia que nos antecedeu… é surpreendente que, em tão poucos anos, tenhamos feito tanto para mudar consciências, sem, contudo, termos sido capazes de assegurar a sobrevivência da humanidade, e sem conseguirmos romper as barreiras dos preconceitos de séculos de existência anteriores!

Por isso, vivo só… sou um ser em extinção… sou um espécime raro e inútil diante da eternidade do Universo… sou apenas um grão de areia nos desertos intergaláticos… Quem me suceder poderá afirmar que praticamos a mais nefasta política de ocupação desse pequeno planeta da constelação que habitamos… e estarão cobertos de razão.

Neste resquício de vida que me resta, nada mais me sobra senão lamentar que só percebi essa verdade quando era tarde demais… tantos anos passei lutando contra o preconceito, contra as ditaduras, contra as desigualdades sociais, e por ideologias esdrúxulas que me esqueci de me engajar na principal batalha da Humanidade: a da sua própria sobrevivência… porém, agora é tarde demais…

Essa é a sina de todos seres humanos, pois sua vida é tão curta que nada lhes resta senão refletir acerca da amplidão desse universo e da insignificância do próprio ser humano… por isso, permanecerei só, ainda que sobreviva por mais algumas poucas dezenas de anos, cada vez menos consciente, cada vez menos capaz de interferir nos destinos da humanidade. Resta-me apenas saber que, na minha curta existência, jamais silenciei, em nenhum momento me calei, mesmo quando minha interpretação do mundo real fosse tão equivocada quanto à de meus antecessores…

Hoje é o teu dia, Poeta!

Poeta, despertai, pois hoje dizem ser teu dia!
Busca as razões para seres poeta… ou, talvez, feliz…
Em outros tempos de menos temores, até que poderias…
Hoje, porém, submerges em pesadelos de aprendiz.

Poeta, despertai do sonho inglório, pois é hoje o teu dia!
Acalentai a esperança moribunda, qual a pobre meretriz…
Que, ainda criança, sequer imaginara sua vida por um triz…
E agora, nas calçadas, arrasta sua alma, seu fardo… chamariz!

É teu esse dia, poeta! Vibrai tuas cordas no silêncio da garganta!
Despoja-te da glória! Nunca a alcançarás! Sois poeta, enfim!
Segue teu rumo adiante, à eternidade, à musa que te encanta!
Esquece-te do passado, pois tua caminhada só te levará ao fim…

Não… talvez não sejas mesmo esse poeta… tua rima é pobre…
Tuas palavras não têm o ritmo vibrante da vida ao teu redor!
De teu ser embaraçado só tens a imagem projetada no passado…
E, de tristeza, já morreste tantas vezes que não te erguerás jamais.

O Caos e a Perfeição

O que me encanta é o CAOS, não a Perfeição!

É no Caos que se manifesta a Perfeição do Universo, e sua Beleza inquestionável!!

A Desordem universal é que nos leva a acreditar na perenidade do Infinito!

O contraponto do Caos não é a Perfeição, mas a uniformidade monótona da criação humana… a linha reta, o círculo, o monocromático das paredes, as monoculturas e os jardins dos palácios imperiais, onde a Harmonia quebra a complexidade do Caos…

O que me assusta é o CAOS, não a Perfeição!

O Caos é o Imponderável, o Imprevisível, o Inesperado, o Desconhecido!

A vida sem o Caos é o oposto do Ser Criador: são as regras, as normas, a rotina dos escritórios, os horários determinados pelo relógio, o previsível e o uniforme…

O que me motiva é o CAOS, não a Perfeição!

O Caos é a Surpresa, o Despertar, a Descoberta, a Invenção, a Inovação permanente!

O mundo sem o Caos é uma sucessão de fatos corriqueiros, cotidianos, um arrastar do tempo sem a beleza incontestável da descoberta, um mundo monótono, inútil e vazio, onde predominam as regras e as leis humanas, em detrimento da desordem do Caos…

O que me apavora é o CAOS, não a Perfeição!

O Caos é a Escuridão, o Salto no Vazio, a Busca da Perfeição sem jamais atingi-la!

O homem sem o Caos é um ser amorfo, desprovido de sensibilidade, incapaz de discernir entre o Eterno e o trivial, entre a matéria e o Espírito, entre o Bem e o mal…

O que me move é o CAOS, não a Perfeição!

O Caos é a Mola Propulsora da Humanidade, a Força Interior de todo Ser Vivente!

Sem o Caos, o mundo permaneceria na Idade das Trevas! Mas, talvez essa teria sido a Maçã de Adão e Eva, o momento em que o Homem se diferenciou dos animais e se tornou Dono do Universo… talvez, nesse momento de inflexão, o Mundo tenha começado a definhar, a se acabar, a se autodestruir… e a Perfeição do Universo, transfigurada pelo Caos, tenha deixado de existir, nos impelindo a colocar Ordem na Natureza… talvez a verdadeira Ordem seja o Império do Caos, e o permanente desequilíbrio de forças no Universo seja sua Lei Maior que o mantém vivo e eterno…

A existência de DEUS

De onde viria a necessidade e o conceito de divindades dentre os homens? Por que precisamos de um Deus? Quais revelações ou reflexões filosóficas sustentariam a hipótese de uma existência após a morte apenas para os humanos da Terra? Para onde iríamos depois dessa vida terrena, tão generosa para poucos e tão injusta para a grande maioria dos seres viventes? Enfim, por que acreditar em DEUS, se nada nos permite comprovar a sua inútil existência? À expressão Cristã “DEUS CRIOU OS HOMENS À SUA IMAGEM E SEMELHANÇA” eu contraponho a minha: “OS HOMENS CRIARAM SEUS DEUSES À SUA IMAGEM E SEMELHANÇA”!

Zeus
Zeus, o deus supremo do Olimpo, o céu dos gregos

Percorrendo os passos da evolução da Humanidade ao longo dos séculos, desde que nos diferenciamos de nossos semelhantes, os macacos, percebemos que o conceito de Deus está associado ao desconhecido, àquilo que não pode ser provado, às lacunas do nosso conhecimento que nos faziam sentir pavor dos elementos naturais nos primórdios da civilização, dos poderosos felinos, anfíbios e mamutes, na formação da sociedade humana, e dos espíritos dos mortos ao longo de toda nossa história terrena. As divindades eram concebidas conforme essas crendices, associando-as a seres híbridos de animas e humanos, como na Grécia, no Egito e na Índia, nos séculos que antecederam a vinda dos avatares, profetas e santos.

GANESHA
“Ganesha, deusa hindu, misto de elefante e mulher”

Ra
Ra, deus egipcio do Sol

Apolo e as virgens
Apolo, o deus da beleza, e suas ninfas apaixonadas

Porém, já no século XVI, período das “Grandes Navegações”, com cerca de um milhão de anos da existência do “homo erectus”, ainda vemos nossos antepassados acreditarem nos mares povoados de seres mitológicos, muito semelhantes àqueles das civilizações precoces, mistos de serpentes e pássaros, capazes de afundar toda uma frota de galeões e devorar seus marinheiros. Com sua imaginação povoada de seres fantásticos, não é de se estranhar que esses povos criassem suas divindades com poderes malévolos e espírito vingativo e cruel. Pois foi dessa herança fantasiosa que nossa civilização se formou, e as religiões se constituíram e prosperaram.

Dragões marinhos
Monstros marinhos, seres fantásticos da mitologia europeia no final da Idade Média

Os indígenas, habitantes desse território chamado Brasil, assim como os povos da pré-história, construíram sua cosmogonia com base em fenômenos e entidades naturais, como o trovão (Tupã), a cobra-canoa (dos índios do alto rio Negro), os espíritos da floresta, como o Xapiripë dos Yanomami, que eram invocados através da inalação de um pó alucinógeno, produzido com yãkoãna, resina de casca de árvores, enquanto os Ashaninka, índios do Acre, usam o Ayahuásca, também alucinógeno, mistura da erva “chacrona” e do cipó “jagube”, em suas cerimônias espirituais… vê-se nesses resíduos de civilizações tradicionais, que o arcabouço de crendices, mitos e lendas persistiu a cinco séculos de dominação e extermínio. Hoje, grande parte dos remanescentes das populações indígenas do continente se apegou a seitas evangélicas, que fazem de seu livro “sagrado” a literatura essencial para suas crendices e o alimento para seu espírito desconsolado.

Voltando à nossa indagação inicial, por que precisamos de um Deus, seja ele qual for, que tenha poderes inimagináveis, conhecimento absoluto do passado e do futuro, onipresença e domínio sobre todas as coisas, vivas ou inertes, existentes no Universo? Por que haveria um INÍCIO para esse tempo/espaço infinito? E, sendo infinito, por que haveria de ter início e FIM? De onde surgiu tal conceito de infinitude das coisas e relatividade do espaço-tempo? E por que nossos espíritos/almas deveriam ir para algum lugar depois da morte, onde só existiria bondade e compaixão, se na Terra onde vivemos o mal prevalece sobre as virtudes humanas, sempre favorecendo àqueles que só se valeram do mal para usufruir dos privilégios desse mundo pleno de injustiças? Por que esse DEUS, ao criar o Universo, não o povoou apenas com criaturas do bem, vivendo com a fartura desse Universo, sem sofrimento, dor, ambição ou pavor? O que foi feito do nosso Paraíso Perdido, do nosso “Shangrilá”?

Certamente, essa discussão é tão interminável quanto inútil… porém meus argumentos me são suficientes para acreditar que todas as vidas terão um fim inexorável, que o espírito humano é apenas ficção e se esvanecerá na eternidade do tempo, a dialética teológica não sobreviverá à curta existência do ser, e as palavras proferidas pelos homens se tornarão tão insignificantes quanto o imenso vazio que predomina nos espaços entre as infinitas estrelas que cintilam no Universo…