Cotidiana vida

Socorro!… Socorro!…

No meio da noite, gritos insistentes e aflitos trouxeram-me à realidade, confundindo o meu entendimento… talvez por invadir meus sonhos, tornando-os em pesadelos, talvez dos próprios pesadelos emergissem os gritos, a povoar a minha realidade.

Já me acostumara àquelas cenas da desconfortável vizinhança, tão próxima e distante, a devassar os contrastes sociais, incômoda convivência involuntária.

Flap-flap-flap- flap-flap- flap-flap- flap-flap- flap-flap- flap-flap- flap-flap…

Tu-tu-tu-tu- tu-tu-tu- tu-tu-tu- tu-tu-tu- tu-tu-tu- tu-tu-tu- tu-tu-tu- tu-tu-tu…

Pairando sobre a favela e meu apartamento, essa indesejada presença dos helicópteros já se tornara parte de meu cenário, às vezes apenas para ostentar o poder coercitivo da polícia, outras, porém, em busca de bandidos, traficantes, assassinos, seres indesejáveis, cotidianamente presentes em nossa existência metropolitana.

Não raro, tiros se perdiam na escuridão dos sonhos, mesclando ilusão e realidade nos palcos de minhas noites insones e agitadas.

Mesmo durante o dia, em plena luz do sol, papelotes eram trocados por dinheiro, às grossas vistas da polícia, que mantinha um posto armado e motorizado nos arredores, sem função aparente.

Socorro!… Socorro!… Socorro!…

Cada vez mais fracos, os gritos invadiam minha consciência, atormentando meu ser desconsolado. Já desistira de ligar, pedindo ajuda, que nunca chegava. E o mundo lá fora, além de minha janela, indefeso e abandonado…

Afinal, quem se  atreveria a cruzar as fronteiras imaginárias do bom-senso e da razão, mesmo que fosse essa sua única razão de existir como policial?

Era uma voz feminina, quase suave, uma adolescente, talvez…

Percorrendo a lateral do edifício onde eu morava, um beco mal iluminado era a única travessia da avenida para a favela ao longo de 2.000 metros.

Aquela estreita e sinuosa passagem aproximava os dois mundos irreconciliáveis: de um lado, edifícios, lojas, escritórios, residências, e um fluxo incessante de veículos, a provocar um ruído estranho, constante e incômodo nos transeuntes e moradores; do outro lado, barracos e precárias construções de alvenaria se amontoavam por quase quatro quadras, descaracterizando a urbana civilização, povoada de miséria e desolação.

Socorro…

Já não sabia se era um grito abafado ou um gemido sem esperança.

Ousei olhar por entre as frestas da veneziana, procurando entrever o Ser a suplicar por ajuda… Apenas a noite, escura e pesada, e a tênue chama tremeluzente da fraca iluminação, a refletir seus raios nas poças do caminho…

Pou! Pou! Pou!

O choque brusco dos tiros, certeiros e inevitáveis, arrancou-me do torpor da semi-vigília em que me encontrava, evidenciando o trágico desfecho.

Só o silêncio permaneceu no ar.

Ninguém ousara abrir as janelas, ninguém acolhera os gritos de desespero… O drama ficara, outra vez, do lado de fora de nossas vidas…

Naquela noite, não consegui reconciliar meu sono, novamente. Desperto e desconfortável, imaginava aquela pobre vida, interrompida precocemente pela cruel realidade que nos cerca e oprime.

No dia seguinte, um burburinho pelas ruas, pelos botecos, nas calçadas… e a poça de sangue ao lado da jovem seminua… nada mais.

Transeuntes desviavam seu trajeto para poder olhar de perto a nova vítima.

Precariamente coberta por jornais que mal disfarçavam o horror estampado em seu rosto, pouco mais que uma criança, entregue à curiosidade mórbida e perversa dos passantes.

Abalado em minha confiança na humanidade, nos dias que se seguiram confundia minha insônia com o dia interminável, mal reparando no passar das horas.

O mundo à minha volta se reconstituíra, apagando as marcas da tragédia recente. Já não se comentava, às rodas dos desocupados, o triste final de uma vida, ou a inoperância dos aparatos policiais.

Os acontecimentos corriqueiros do cotidiano se entrelaçavam, nas tragédias eventuais. Porém, a estas, só é concedido o brilhar efêmero dos holofotes no momento em que se manifestam, anônimas, em nossas cercanias.

Mesmo aos mais próximos dessas vítimas ocasionais, só é dado permanecer em suas memórias voláteis pelo tempo necessário a assimilar o medo e o terror de si mesmos, esmaecendo aos poucos, à medida em que a auto-comiseração se esvai e se acaba; ou até que um novo drama se avizinhe e se sobreponha às nossas prioridades imediatas.

Foi assim que, chegando à minha casa, dias mais tarde, fui informado do suicídio de um casal de idosos, antigos moradores do edifício, esquecidos pelos seus amados filhos à solidão reclusa de sua cotidiana vida…

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