A Separação

Para quem o conhecia, Rúben era um filósofo, um sonhador, um pensador sem ambições nem vaidades, tendo uma vida reservada e comedida, sem desperdícios e incapaz de acumular riquezas. Talvez tenha sido este o motivo maior que o levou a se separar de sua mulher, depois de quase cinquenta anos de casamento. Ele sempre a amou, a adorou de uma forma idealizada, como a conhecera na adolescência. Era muito estranho que tenham se gostado tanto e convivido por tantos anos, sendo assim tão diferentes. Katya era uma mulher forte, determinada, agitada e extremamente ativa. Chegou a ter três empregos de uma só vez. Se somadas as horas que ela trabalhava em cada um, não lhe restariam horas suficientes para seu descanso. Ela era a referência familiar para a competência absoluta!

Fazia amizades com muita facilidade, comunicava-se com todos que a encontravam, era o centro das atenções onde estivesse. Sabia conquistar as pessoas pela sua presença marcante, pela sua inteligência e lucidez, pelo carisma que atraía a todos. Onde estivesse, todos a rodeavam para ouvir suas palavras e serem contaminados pela sua jovialidade e inteligência. Por essas qualidades ela conquistou Rúben, que a amava intensamente, apesar de não ser correspondido.

Katya tinha uma personalidade dominadora, chegando a ser agressiva e intolerante com Rúben e, depois, também com os filhos. Ao mesmo tempo, estava sempre pronta a ajudar àqueles que precisassem. Não se importava com nada que não fosse seu trabalho, seus amigos de serviço e sua liberdade absoluta em tomar decisões intempestivas, das quais jamais se arrependera, pois tinha o hábito de atribuir a outros os seus próprios erros, sem qualquer remorso. Graças a isso, eles tiveram muitos problemas de relacionamento, que Rúben acabava por assumir como seus, para evitar discussões e poupá-la de desfechos indesejáveis, o que o tornava culpado de tudo que ocorria.

Katya tinha alguns hábitos extremamente nocivos ao meio ambiente, como usar materiais descartáveis: copos, talheres, pratos… o descarte desses materiais contrastava com o cuidado de Rúben em manipular o mínimo de produtos não perecíveis. Enquanto ela desperdiçava em tudo, ele procurava usar qualquer coisa com absoluta parcimônia. Além disso, Katya era uma mulher tipicamente acumuladora. Guardava de tudo: roupas, medicamentos, enfeites, lembranças; tudo que lhe caía às mãos encontrava sempre um espaço na casa para ser armazenado, mesmo que nunca mais tivesse qualquer utilidade para ela, que os amontoava nos armários e fora deles, em sacolas e caixas, na sala e nos quartos… até na garagem e no próprio carro ela estocava uma enorme quantidade de objetos inúteis e descartáveis, que guardava como ‘tesouros’ inimagináveis!

Esse conflito durou quase cinquenta anos entre os dois. Muitas vezes ele tentava agradá-la, fazendo-lhe um carinho ou um agrado, trazendo-lhe alimentos na cama, onde ela passava todas as horas em que não estivesse trabalhando, falando com seus amigos na internet, jogando cartas e dormindo sobre o teclado, onde, não raro, caíam água e café, duas coisas que ela bebia exageradamente. Em dado momento, Rúben se cansou, e decidiu separar-se e viver solitário em um pequeno apartamento, bem próximo à sua amada, pois seu amor por ela nunca foi questionado, assim como sua tolerância.

Mas o motivo declarado da separação foi um flagrante que ela lhe deu, ao encontrá-lo com uma jovem em um boteco de esquina, perto de sua casa. Todos diziam que ele fora tolo demais, e se expôs de maneira infantil a uma situação injustificável. Porém, só ele sabia quantas vezes fizera coisas assim, deixando-se flagrar em cenas comprometedoras. Parece que, de fato, ele queria provocar a separação, pois não tinha coragem de deixá-la sozinha depois de tantos anos. E ela lhe cobrava: “não adianta reclamar, pois minha mãe disse a você que eu era assim, e que ela não aceitaria devolução”. De fato, embora fosse um argumento pueril, isso pesava muito para ele.

Naquele dia, ela o levou aos gritos pela rua, agredindo-o com as piores palavras que encontrou para humilhá-lo. Mas ele prosseguiu calado, ao seu lado, caminhando um pouco atrás, em passo lento, seguindo-a até dentro da casa. Lá, ela prosseguiu aos gritos até que sua emoção aflorou e pôs-se a chorar copiosamente, como nunca antes houvera acontecido. Nesse momento ele se viu acuado, pego em sua mais sensível fragilidade: Rúben não conseguia vê-la chorar, talvez porque ela só chorava depois de longas e dolorosas discussões. Mas, daquela vez, ele suportou em silêncio, calou-se, deixou que ela se acalmasse, e depois se afastou para seu quarto. Há vários anos eles já não dormiam no mesmo quarto, o que fora uma decisão terrível para Rúben, que amava até mesmo o calor de seu corpo junto ao dele.

No dia seguinte, ele entregou a Katya uma longa carta de despedida, uma declaração de amor. Deixou que ela lesse em silêncio, deu-lhe um beijo no rosto, preparou seu último cafezinho, trouxe-lhe torradas, frios, geleias e requeijão, em uma bandeja, e deixou-a sobre a cama. Não falou mais uma só palavra, e foi-se embora. Ao chegar na rua, suas pernas tremiam, sua vontade enfraquecia, seu corpo não se sustentava de pé, e ele deixou-se cair sobre um banco do jardim, em frente à casa. Permaneceu assim por algumas horas… ouvia os pássaros cantando nas árvores, via os carros passando sem lhe notar, via transeuntes apressados, tratadores de cães levando seus bichinhos, crianças com seus pais ou cuidadoras, indo para a escola… era um dia como outro qualquer, mas não para ele. Estava só como nunca esteve.

Sentiu-se, ao mesmo tempo, livre e desconsolado… jurara para si mesmo que a faria feliz, dedicara sua vida a cuidar-lhe, tentava adivinhar seus mais secretos pensamentos e desejos, procurava satisfazer seus menores desejos, dava-lhe presentes em todas as datas importantes para ela, abria mão de seus próprios interesses para satisfazer os dela… Porém, por uma razão que ele desconhecia, nada a tornava mais amável, gentil ou delicada. Rúben era um homem de poucas palavras, mas tinha certo talento para escrever, e seus bilhetes, suas cartas, seus poemas eram sempre dedicados à sua paixão por Katya. Ela, porém, desprezava essas gentilezas, escondia os presentes que recebera e aumentava, a cada dia, sua intolerância aos menores sinais de ‘desobediência’ de Rúben às suas rígidas determinações.

Levantou-se do banco do jardim e caminhou durante horas pelas ruas, pela madrugada, pelas lembranças… alternava a tristeza com a frustração de não ter podido torná-la feliz. Trazia para si a culpa dos desencontros do casal, como se ele tivesse descumprido alguma regra de ouro do relacionamento conjugal quando sentou-se com aquela rapariga num bar de esquina. Ele não conhecia a garota… viu-a passar e, quase por instinto, convidou-a a sentar-se, ofereceu-lhe uma bebida, admirou-a, conversaram trivialidades e foram para o quarto dela em um prédio de segunda categoria, onde ela dizia morar. Era um lugar sombrio, lúgubre, sinistro… sentiu-se mal e saiu, com a garota atrás dele… sentaram-se de volta à mesa do bar e ficaram em silêncio… e foi aí que Katya apareceu e os encontrou ali, tão estranhos um ao outro quanto dois desconhecidos de pé, lendo, cada um, seu jornal, em um vagão do metrô, às seis horas da tarde…

Já de fora do bar, na calçada, ela vociferava impropérios impronunciáveis, atraindo a atenção de todos que estavam no boteco e na calçada em frente. Rúben não teve iniciativa nem tranquilidade suficiente para desmentir o que pareceria óbvio a qualquer pessoa. Ela era uma garota de programa e ele, um velho decrépito, em uma aventura escandalosa, diante de todos. Fora flagrado em público, e não se defendeu. O que se passou em seguida é a narrativa que antecede a esses esclarecimentos totalmente desnecessários.

Esse fato poderia ter sido contornado, evitado, esquecido… mas ele preferiu usá-lo como argumento infeliz de sua derradeira despedida. Ele se foi com sua mágoa, com sua vergonha, tristeza e arrependimento, deixando a ela, sua mulher, a justificativa que queria para a sociedade, que nada tinha a ver com suas existências. Certamente, seria motivo para horas de cochichos, fofocas e fantasias eróticas nos salões de beleza, nos saguões dos edifícios, nos cafezinhos do trabalho de ambos, nos meios familiares e nos clubes que frequentavam. Para Rúben, esses seriam motivos suficientes para que ele mudasse completamente sua vida e os ambientes que frequentara por mera educação. Para Katya, sua ‘vergonha’ era, ao mesmo tempo, assunto para denegrir ainda mais o nome do ex-marido, e motivo para chorar publicamente sua desgraça, enquanto sentia um alívio por ter se livrado, definitivamente daquele estorvo que tanto espezinhara enquanto permaneceram ‘juntos’.

Nenhum dos dois voltou atrás, nem manifestou qualquer arrependimento, pois o desgaste do relacionamento era tão grande que essa decisão parecera conveniente a ambos, talvez tardia, talvez errada, mas adequada. Depois desse desfecho nunca mais se falaram. Mantiveram uma distância segura, não visitando os filhos sem antes verificar se ‘o outro’ não tivera a mesma intenção.

Para os filhos, passado o escândalo, também pareceu algo que poderia ter acontecido há muito tempo, sem desentendimentos e de forma ‘civilizada’, como costuma acontecer nos casamentos que se acabam. Afinal, a separação conjugal é a forma amigável para evitar dissabores… poucos, porém, superam com elegância essa situação…

Depois de um ano nenhum dos dois pareceu ter sofrido muito com a separação. Katya continuou se dedicando ao trabalho e aos amigos, enquanto Rúben se fechou em seu mundo particular, dedicando-se à leitura, aos longos textos que costumava escrever, e aos filhos e netos, que acabaram achando a solução excelente.

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por João Carlos Figueiredo Postado em Capítulos

Um comentário em “A Separação

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