“Moço, me dá boas festas?”

03 - CRIANÇAS de RUA e cachorro

Quando eu ainda era criança era comum baterem à nossa porta, na época de Natal, com esse pedido curioso: “Moço, me dá boas-festas?”… na minha inocência de criança, ingenuamente, eu pensava: “Boas Festas!”. Mas logo minha mãe entrava e buscava um prato de comidas bem farto e entregava a cada um dos pedintes, que comiam com gosto e vontade, agradeciam e iam embora. E lá ficava eu com meus botões, analisando, à minha maneira infantil, por que algumas crianças tinham ceias de natal, roupas novas, presentes caros, enquanto tantas outras perambulavam pelas ruas à espera da generosidade de tão poucos.

Muitas décadas se passaram, o Brasil se transformou, vieram ditadores, caudilhos, demagogos, prometeram “dividir o bolo” depois de fazê-lo crescer… e então disseram para o povo que a miséria havia se acabado, e que agora o “papai noel” (aquele patético velhinho da Coca-Cola!) entregaria presentes em todas as casas, de ricos e de pobres, e que ninguém mais morreria de fome, e todos teriam suas casas, iriam à escola e teriam acesso a tudo o que a modernidade pode oferecer! Sim, é verdade! Já não vemos mais mendigos nas ruas e nas praças, não há mais crianças batendo em nossas portas e pedindo ”Moço, me dá boas festas?”… o Brasil é um país do 1º mundo!

É… infelizmente, não dá para mentir… nem para acreditar em papai-noel… tudo continua na mesma… apenas os pobres perderam o que resta de esperança, e os ricos perderam o pouco que lhes restava de solidariedade e hoje bateriam a porta na cara dessas “crianças inconvenientes”! Será que toda verdade é “Inconveniente”?

Mas lá, na cidade grande, as ruas estão ricamente enfeitadas, vendendo sonhos que só os ricos podem realizar! Imensos “papais-noéis” tocam trumpete, bateria e saxofone em uma jazz-band na Avenida Paulista, enquanto as prateleiras e vitrines dos shopping centers estão repletas de brinquedos, bugigangas eletrônicas e roupas caríssimas. Enquanto isso, nas grandes empresas, funcionários bem vestidos e bem-comportados combinam “happy-hours”, e trocam presentes de amigos secretos em festas de confraternização… e entre abraços e beijos até parecem amigos, de fato!

Con-frater-nizar: o ato de se juntar (ou de se reunir) como irmãos; comemorar.

Poucos se lembram das origens do verdadeiro Natal, aquele da cisjordânia, com muito deserto e nenhuma neve! Mesmo aqueles que se dizem cristãos e se ajoelham nos genuflexórios das igrejas cobertas de ouro, não se recordam das mensagens de paz, amor, igualdade e justiça de seu Cristo socialista, o homem “filho de Deus” que veio à Terra para salvar o seu “rebanho”; aquele que se imolou na cruz quando percebeu que sua missão tinha fracassado porque o povo não se importava com seus ensinamentos.

Existe uma certa hipocrisia no Natal: primeiro essa figura grotesca e de mau gosto do “papai noel” travestido de garoto-propaganda da Coca-Cola; depois, a ausência completa do sentido religioso das festas de final de ano; e depois, o egoísmo dos presentes caríssimos para os mais próximos e o esquecimento de que uma horda de seres sub-humanos se arrasta pelas ruas das grandes e pequenas cidades implorando pelos restos de comidas das comilanças, para matar sua fome! E todos terminam suas festas nababescas se abraçando e desejando reciprocamente um “Feliz Natal!”…

Passa o tempo, e o ano se acaba num carnaval fora de propósito ou numa bebedeira sem limites e inconsequente; alguns fazem promessas para cumprir no ano seguinte, e assim a vida se esvai… olhando para o passado distante percebemos que nossa sociedade pouco se difere das sociedades de castas da idade média, dos senhores e dos escravos, dos barões e da plebe ignara… uma minoria privilegiada e arrogante, expropriando um grande contingente de pobres e miseráveis acreditando que, um dia, terão sua recompensa nos céus dos esquecidos… triste ilusão que as religiões dos ricos levam aos pobres para que eles continuem abastecendo suas mesas e geladeiras com os prazeres que aos outros será sempre negado.

E, à nossa porta, à porta de nossa consciência adormecida, bate uma criança quase desnuda, rostinho sujo, olhinhos remelentos, pedindo, quase em súplica: ”Moço, me dá boas festas?”… só que já nos esquecemos o que isso significa, e fechamos a porta, voltando felizes e sem remorsos para a nossa festa!

BOAS FESTAS!

Feliz Ano Novo!

 

Sempre que um ano se encerra temos a sensação ilusória de que o mundo se renova e uma nova oportunidade se manifesta para que o ser humano se regenere e cuide dos outros, da Natureza, dos esquecidos e necessitados, dos segregados pelas injustiças de um mundo desigual, ressurgindo uma efêmera solidariedade que dura o tempo da troca de presentes e das comemorações de Natal e Ano Novo. Nesses dias de muita festa, muita bebida e generosos gastos com presentes, as mensagens trocadas falam de PAZHARMONIA AMOR

Quanto desses desejos são intenções verdadeiras? Quanto de cada um de nós está verdadeiramente comprometido com as mudanças, com uma nova visão de mundo que não segregue a miséria, a cor da pele, a origem étnica e as classes sociais desprivilegiadas? Quanto de nós colocamos nesses textos bonitos e edificantes, que falam de um mundo que nunca existiu?

Pois, apesar de toda hipocrisia contida nessas mensagens, cada ciclo de nossas vidas, quando se encerra, traz um momento de reflexão que até poderia gerar mudanças de comportamento, extraindo de cada um de nós o que de melhor existe. Mas é preciso mais do que palavras, mais do que presentes, mais do que manifestações passageiras de solidariedade. Enquanto estivermos fechados em nosso mundo de privilégios “conquistados”, olhando o Universo através de uma janela, por detrás da cortina e das grades que nos protegem, a vida permanecerá a mesma, e começaremos um novo ano com muitas promessas que jamais se concretizarão.

Portanto, desejo a todos um ano novo diferente, em que as mazelas do mundo nos incomodem o bastante para gerar verdadeiras mudanças, e que não seja mais possível fingir que somos piedosos, solidários e generosos… que a humanidade sofra, de fato, as consequências de suas atrocidades, e que todos nós sejamos, pelo menos, conscientes de nossa parcela de culpa em todo esse processo cruel, deprimente, degradante, injusto e repleto de privilégios inaceitáveis.

Somente assim poderemos mudar, definitivamente, nosso papel na vida e encontrar, em nossos semelhantes, os seres humanos que se ocultam na pobreza, na degradação moral, na sujeira, nas esquinas suspeitas, nos vícios… esse seria o sermão dos seres iluminados que por aqui passaram e deixaram suas doutrinas para nos inspirar. Não existem livros sagrados se as práticas de seus devotos são incoerentes com as palavras que professam nas cerimônias religiosas, se suas vidas são o avesso das suas orações…

Com muito carinho e esperança em um mundo novo e verdadeiramente admirável…

FELIZ ANO NOVO!