O Morro do Pai Inácio

Há três dias aguardávamos que o tempo nos desse uma trégua para a tão esperada trilha da cachoeira da Fumaça, mas chovia todas as noites… de manhã, aquela lama! e os rios já estavam saindo de seu leito…

Mas não perdemos a viagem, pois cada local da Chapada era uma nova descoberta: cachoeiras magníficas, cavernas ricas em espeleotemas, paisagens saídas de cenários… e muito sol durante todo o dia!

Hoje acordamos ainda com o barulho da chuva caindo nas árvores do jardim da pousada, o canto dos pássaros e uma disposição incrível para caminhar! Porém, nosso guia mostrava-se irredutível: um dia inteiro sem chuvas, ou não haverá trilha! Sabíamos que ele tinha razão; afinal, seriam três dias de caminhada até o alto da Fumaça, e os rios ainda não tinham voltado para seus leitos.

Teríamos que nos conformar com mais um passeio… Optamos pelo Morro do Pai Inácio.

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Diz a lenda que um velho escravo vivia atormentando seu “proprietário” com suas artimanhas amorosas. Já passando dos 50 anos, a cabeça grisalha e o rosto afilado, barbas brancas, corpo atlético e um olhar penetrante faziam-no um personagem atraente para as jovens da fazenda.

Conhecido como Pai Inácio, o bom escravo caiu em desgraça quando a própria filha do fazendeiro se engraçou com ele e o caso foi parar nos ouvidos do patrão, que ficou furioso! “Como? Minha própria filha???”

Condenado à morte, o velho fugiu pelos campos, perseguido pela milícia armada, com ordens para dele trazer apenas a cabeça decepada! Mas Pai Inácio era matreiro e muito ágil! e conhecia como ninguém as paragens da Chapada.

Por ali andara sua vida inteira, desde criança quando fora trazido da África em um daqueles navios negreiros.

Seus pais não suportaram a viagem e foram jogados ao mar, com soía acontecer às “cargas” que se perdiam no transporte através dos oceanos traiçoeiros. Sozinho, logo aprendeu as manhas da sobrevivência nessas terras de ninguém, em que os donos das fazendas eram também os donos das vidas de seus escravos.

Esperto, conquistou a admiração e o respeito do seu senhor, sendo por muitos anos o seu predileto, aquele a quem ele delegava as tarefas mais delicadas, servindo mesmo como apaziguador dentre sua gente.

O fazendeiro não gostava dessas conquistas de Pai Inácio, mas fazia vistas grossas às suas aventuras amorosas… isso até que a própria filha se encantou com o negro! Isso também já era demais! A sua própria filha? Teria que ser punido exemplarmente para evitar o escárnio dos demais!

Correndo pelos campos, contornando morros, fugindo dos implacáveis cães que o farejavam noite e dia sem descanso, finalmente o velho foi cercado ao sopé de um morro muito alto e imponente. Não tendo como despistar seus caçadores, sobe o velho pelas encostas do morro, perseguido de perto por seus algozes. E quando chega ao topo, percebe que não tem saída.

Para não se entregar, salta para a morte! Que decepção para os caçadores! O que dizer ao fazendeiro? Que o velho sumiu? Evaporou nas fumaças que subiam pelo entardecer, ocultando o precipício onde saltara o escravo?

A noite chegava e eles não poderiam ficar lá, e nem adiantaria, pois nada poderia ser feito naquele lusco-fusco. Voltaram morro abaixo, prometendo retornar antes do sol nascer para procurar o corpo do velho escravo, que deveria ter-se despedaçado nas rochas. Precisavam encontrá-lo antes que os animais de rapina o devorassem.

No dia seguinte, conforme combinado, lá estavam eles rodeando o morro à procura da caça, cortando mato, andado com dificuldade naquele terreno difícil onde ninguém nunca pisava, por falta de um motivo convincente.

Andaram durante horas, pela manhã e pela tarde, sem descanso, mas nada havia naquele lugar desagradável… o que dizer ao patrão? Que deixaram o velho desaparecer como fumaça e que não poderiam comprovar sua morte?

Dizem que os capangas do fazendeiro foram severamente punidos com chicotadas, mas nunca ninguém encontrou os restos do velho Pai Inácio. Na falta de evidências, as lendas surgiram… hipóteses variadas tentando explicar o desaparecimento do pobre coitado.

Uns diziam que ele saltara com um guarda-chuva, e que pousara suavemente no pé do morro e fugira para bem longe, conquistando outras mucamas por onde passara…

Outros contavam que ele se evaporou na neblina da tarde e se transformou em um fantasma que todas as noites voltava para o morro, a assustar os incautos que eventualmente por lá se aventurassem…

Outros ainda havia que perceberam que, logo abaixo do ponto de onde saltara o esperto escravo, uma plataforma se estendia por uns 20 metros, larga o bastante para que ele se escondesse e fugisse dos “cabras” do patrão.

Esses também diziam que Pai Inácio teria voltado à fazenda e se encontrado com a jovem moça por quem se apaixonara, e a esta engravidou. Passados nove meses, ninguém sabia explicar o fruto moreno que nasceu desse amor.

Dizem, ainda, que o pai da moça nunca a perdoou; e ela, caída em desgraça, foi cuidada pelos escravos, vivendo na senzala pelo resto dos seus dias. Há ainda aqueles que dizem que a jovem se matou de tristeza…

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Saímos lá pelas nove da manhã, depois de um delicioso café servido pela dona da pousada, e nos encaminhamos para o Morro do Pai Inácio. De longe, sua silhueta incrível se projetava no horizonte, contrastando com o Morro do Camelo e outras formações típicas das “mesetas” Diamantinas.

A subida do morro é leve e fácil de ser percorrida. Chegamos ao topo em poucos minutos, e logo nos deparamos com a imensidão dos campos ao redor! Dezenas de quilômetros de morros, quase todos isolados, povoando aquele deserto deslumbrante! Milhões de anos de formações rochosas esculpidas pelos ventos, ornando nosso universo visual incomparável! Em seu cume, o morro é chapado e circular, como aparenta ser de baixo.

Vegetação escassa, mas rica em variedades típicas dos campos de altitude daquela região: um tipo de cacto conhecido como xique-xique prolifera em todo o espaço, entremeado por pequenos arbustos com delicadas flores brancas e vários pequenos lagos formados pela água das chuvas… No local onde, supostamente, o Pai Inácio pôs fim à sua vida, um enorme cruzeiro de ferro demarca o terreno.

De fato, ao chegarmos à beirada, nos deparamos com aquela marquise natural, pouco mais de um metro e meio abaixo… se fosse noite, em meio ao nevoeiro, certamente passaria despercebida. E a vista de lá é algo indescritível!

Depois das sessões de fotos, nos sentamos em círculo e conversamos muito com nosso guia, que nos contou em detalhes todas aquelas lendas. Foi então que surgiu a idéia de pernoitarmos lá e aguardarmos a chegada do fantasma do pobre escravo! E essa idéia meio estúpida logo conseguiu tantos adeptos que o guia também se entusiasmou.

Só havia um problema: lá embaixo, antes de subirmos, pagamos uma taxa de turismo para o dono do morro! Como pode alguém ser dono daquele morro? Bem, teríamos que descer e voltar bem no final da tarde, com barracas e sacos de dormir, e esperar que os guardas do Pai Inácio fossem embora, antes de retornarmos até o topo da montanha.

E foi assim que aconteceu. Lá pelas cinco da tarde estávamos de volta. Como não era um período de alta temporada, os guardas já tinham ido embora, certos de que ninguém voltaria por lá nesse horário. Daí, para pular a cerca e subir o morro foi uma questão de minutos. Armamos nossas barracas e nos preparamos para um jantar sob as estrelas.

Sim, para nossa sorte, aquele dia não choveu, e o céu estava cravado de pequenos diamantes luminosos, piscando incessantemente. Enquanto comíamos uma macarronada feita no pequeno fogareiro, conversávamos sobre as mais prováveis hipóteses de desfecho da história do Pai Inácio.

Na verdade, nenhum de nós acreditava mesmo em fantasmas, mas achávamos um excelente pretexto para um pernoite diferente e alegre. E a noite transcorria tranqüila e serena quando, por um momento, percebemos que um nevoeiro se formara ao nosso redor. Como as barracas já estavam montadas, decidimos que era hora de dormir; despedimo-nos e nos recolhemos, cada um à sua barraca, um pouco frustrados por esse desfecho.

Na verdade, ninguém conseguia dormir, pensando no Pai Inácio a perambular à nossa volta. Uns e outros, vez por outra se levantavam sob o pretexto de “ir ao banheiro”. E assim foi a noite toda…

No dia seguinte acordamos com o nascer do sol. Aos poucos nos reunimos ao redor do fogareiro, preparando o café da manhã, à espera dos mais preguiçosos, que dormiam nas barracas… assim pensávamos!

Logo nos demos conta das ausências: três meninas que estavam em uma mesma barraca haviam desaparecido! Ficamos apavorados! Será que elas se levantaram à noite e, incautas, caíram no precipício? Procuramos por toda a volta, mas nada de encontrá-las. Não havia sinais de ferimentos ou qualquer coisa que pudesse indicar uma causa razoável.

Por fim, desmontamos as barracas e decidimos voltar e pedir ajuda. Qual não foi a nossa surpresa quando, na descida, nos encontramos com as três garotas, alegres e sorridentes, voltando para o acampamento como se nada tivesse acontecido!


Onde estiveram a noite toda? Nenhuma quis nos dar explicações… apenas sorriram… misteriosamente felizes…