O Anjo da Morte

Depois da decisão pela eutanásia, Rúben se acalmou e voltou a tentar se recuperar, tentando mover os olhos, as pálpebras, um dedo que fosse, para se comunicar com a família. Mas isso não funcionou. Continuava inerte em sua cama de hospital. As visitas familiares se restringiram, aos poucos, aos finais de semana, pois como ele não era mais monitorado, não havia o que desligar, e a eutanásia fora deixada de lado, definitivamente. Agora, o que se discutia era o Plano B: levá-lo para casa, ou para um asilo? E a decisão seria, com certeza, o asilo, ou ‘casa de repouso’, um eufemismo pedante, que não disfarçava o fato de que a família estava abdicando de suas obrigações de cuidar do pai-avô, que estava ‘inválido’, palavra igualmente agressiva para quem cuidara tão bem de seus descendentes.

A decisão fora tomada e o levaram para um asilo. Lá chegando, colocaram-no em um quarto confortável, bem iluminado, com cama, criado-mudo, uma penteadeira, sabe-se lá para que serviria, dois tapetes aos lados da cama, banheiro privativo, que ele nunca poderia utilizar, por não se mover e não ter controle sobre suas funções intestinais e da bexiga, e um quadro na parede, de um enfermo idoso sendo tratado por uma exuberante enfermeira de seios voluptuosos, igualmente inútil. Haveria um dia da semana para as visitas, entrega dos relatórios semanais de evolução do paciente, além de três refeições por dia, igualmente desnecessárias, uma vez que ele continuaria com a nutrição parenteral, por sonda.

A ‘clínica’, como a chamavam, tinha vários enfermeiros e médicos, além dos cuidadores que atendiam aos residentes. Era uma casa grande, com corredores longos e discretamente iluminados, uma sala de convivência, que Rúben também jamais usaria, um belo jardim florido à frente da casa, e estacionamento para os visitantes. Fora dos dias de visita a clínica faria uma exceção para a família de Rúben, devido ao estado terminal em que ele se encontrava, mas esse dia extra de visitas nunca seria utilizado. Já era um grande ‘sacrifício’ ter que visitá-lo uma vez por semana, justamente no sábado!

E assim, os dias se passam na monotonia de um quarto vazio, com horários para banho, troca de roupas, limpeza e verificação do soro, alimentos e medicamentos. Fora desses horários, Rúben só escutava os pássaros nas árvores defronte à sua janela, e o ruído incessante do tráfego na avenida, que passava em frente à clínica. Com isso, seus pensamentos fugiam para lugares distantes, enredando-se por fantásticos caminhos desconhecidos, rememorando experiências alucinantes e permitindo que ele recuperasse sua calma e paciência, retirando a expectativa improvável de uma recuperação, por menor que fosse. Os dias se tornaram mais longos e tristes, pois ele sabia que já era quase um retrato desbotado no pensamento de seus filhos e netos. Era um deserdado à espera da morte…

Mas, um dia, sua neta Acácia, de cujo rosto nem se lembrava, aliás, nem dela ele recordava, chegou para visitá-lo em um dia fora do calendário, sabe-se lá como conseguiu convencer os funcionários da clínica, e sentou-se ao seu lado, depois de beijar-lhe a face. Ele sentiu aquele gesto de carinho, ouviu a doçura de sua voz, e se encantou, como há muito tempo não acontecia, com essa menina que lhe era estranha até há poucos minutos. “Bom dia, vovô! Sabe quem eu sou?” Ele teve o ímpeto de responder, fez um esforço inaudito, mexeu-se por dentro, como nunca mais fizera, e voltou a relaxar, desconsolado por ter perdido a oportunidade de mostrar-se vivo. Mas, curiosamente, ela deu um grito incontido e disse: “Você se mexeu! Você me escutou e entendeu o que eu disse! Enfermeira! Venha aqui depressa!”, mas ninguém atendeu. Havia um botão na cabeceira da cama para chamar por auxílio, e então ela o acionou.

Em um minuto chegou um enfermeiro idoso, talvez o mais velho funcionário da clínica, e perguntou a ela o que houve. E ela, com a ansiedade de uma descoberta inacreditável e improvável, relatou o ocorrido, quase que atropelando suas palavras ao dizê-las. O enfermeiro olhou para Rúben, incrédulo, e não viu um só movimento. Perguntou novamente a ela o que vira: teria sido apenas um espasmo involuntário? Piscara um olho? Mexera alguma parte do corpo? Qual parte teria sido? Mas a menina Acácia não soube responder… só sabia que viu o avô se mover, um movimento quase imperceptível.

Era necessário que o gesto se repetisse, mas o avô se perdera, novamente, em seus pensamentos confusos, e se esqueceu da netinha que o vira estar presente, vivo, consciente, se é que se poderia chamar assim a um imperceptível movimento… a menina não se conformou. Saiu do quarto, esperou alguns momentos, e voltou, repetindo o mesmo procedimento da primeira vez: beijou-o na face, e falou “Bom dia, vovô! Sabe quem sou eu?”. Desta vez não funcionou. O avô continuava ausente, distante, incomunicável. O enfermeiro foi embora, e pediu que a menina abreviasse sua visita, pois já tinha acabado o tempo concedido a ela pela recepção da clínica.

Acácia ficou inconsolada, e pôs-se a chorar, copiosamente, deitada sobre o peito do avô. Suas lágrimas escorreram pelo rosto, molhando o corpo de Rúben, que sentiu aquela umidade em seu peito… percebeu o que ocorrera, e aquela ansiedade em comunicar-se voltou a acontecer. Discretamente, com um pequeno movimento tocou, com um dedo, a menina, e ela o agarrou com força, segurou-o abraçada, tentando manter aquela sensação maravilhosa de ter sido a privilegiada que descobriu que seu avô querido estava consciente. Continuou a chorar baixinho por alguns instantes, até que se acalmou. Ainda sentia um leve roçar da mão do avô, e temia perdê-lo naquele momento. Abraçava-o ainda forte quando o enfermeiro retornou ao quarto com a intenção de retirá-la. Mas viu a cena e também se emocionou. Afastou-se discretamente, deixando-os sozinhos naquele instante essencial da vida, em que um milagre acontecia.

Não o ‘milagre’ das religiões, que exigem comprovação e testemunhas, mas o milagre da vida, que vem depois de se esvair na solidão e no abandono… Acácia quase adormeceu sobre o avô, feliz por ter sido a escolhida para trazê-lo de volta ao mundo dos homens. Porém, depois de um tempo que nenhum relógio poderia medir, ela percebeu que seu avô se fora, talvez para sempre. Já não sentia seu toque suave… mas também não sentia o bater de seu coração… seu choro retornou com outra intensidade, e chamou o enfermeiro, desta vez, desesperada. Ele entrou rapidamente no quarto e percebeu que algo ruim estava acontecendo. Delicadamente, afastou a menina e mediu o pulso do paciente… não havia pulso. Apertou o botão de emergência e o médico apareceu em poucos segundos.

Rúben estava morto. Tentaram ressuscitá-lo fazendo massagem cardíaca, respiração artificial, choques elétricos, mas nada o faria voltar à vida. Ele se fora para sempre, não sem antes passar a mensagem de que, por todo o tempo, estivera ali, na presença de todos, esperando que alguém percebesse sua presença, mas ninguém teve a sensibilidade para captar sua mensagem. Somente uma menina, Acácia, sua netinha de quem havia se esquecido, soube tocá-lo a ponto de ativar suas mais profundas energias, fazendo-o mover um músculo que faria toda a diferença: ele estava consciente, estava ali o tempo todo, esperando por essa mensagem de amor, de ternura, de carinho e desprendimento, que ninguém mais soubera compreender…

Rúben não voltaria à vida. Seu tempo se extinguira nesse último gesto desesperado. Não conseguiu preservar suas memórias, nem desfazer os liames que o prendiam à imaginação. Seus sonhos, suas ilusões, suas viagens astrais se foram também para sempre e ninguém saberia que elas existiram. Sua missão não fora cumprida, segundo seu desejo. Porém, ele atingira seus objetivos, na medida em que sua vida fora coerente com seu pensamento, com seus valores e princípios, dos quais nunca tergiversara. Sempre encarou seus desafios e os venceu, ainda que sua mensagem não tenha sido compreendida por aqueles a quem quisera tanto bem. Foi um incompreendido porque nunca soubera valorizar a palavra escrita. Preferia o sentimento, a energia sutil, a presença da alma na ausência do corpo. Olhou a vida como deveria ser vista por todos, com a delicadeza do amor aos seres invisíveis que habitam o interior de todos os seres viventes, mas que a maioria se recusa a perceber. Não amealhou riquezas materiais, mas construiu castelos nas almas daqueles poucos que o compreenderam. Guardou-se para esse instante final em que um ser puro chegasse até ele e captasse aquela força interior, que emergiu suavemente, tocando a alma de Acácia e, sem que proferisse uma só palavra, transferiu a ela seu poder imenso. Se ela soube disso? Talvez… mas uma pequena semente foi plantada e poderá eclodir um dia, para sucedê-lo nessa missão reservada para poucos, compreendida por apenas aqueles iluminados que voltam à vida para prosseguir sua missão.

Seu corpo foi cremado, de acordo com sua vontade, declarada desde a infância, e suas cinzas jogadas na nascente de um regato que compunha uma das mais belas bacias hidrográficas do planeta. Ele dizia que suas cinzas caminhariam lentamente para o mar, indo juntar-se a outras águas de todos os rios que existem no planeta. Como dizia um monge franciscano, “o mar é o céu dos rios”… ele ouviu isso daquele monge quando percorria as águas daquele rio que agora o levava para seu destino final, o mar dos mestres e iniciados…

Durante a cerimônia de cremação, uma figura discreta se colocara no fundo da sala, com a cabeça coberta por um véu, vestida de preto, absorta em suas memórias… era Katya… ela soube da morte de seu ex-marido por Acácia, que mantinha por ela uma grande admiração. Ela permaneceu assim, em silêncio e solitária, até o final dos procedimentos, mas não acompanhou os familiares, preferindo ir-se embora antes que os outros saíssem. Depois da separação, sua relação com a família se tornou cada vez mais distante, e ela também se impôs um exílio voluntário, morando, até o fim de sua vida, no ‘flat’ que comprara com a venda de alguns bens de família.

Não existe vida futura, assim como não existe vida passada… todas as vidas estão no presente, aqui, onde elas acontecem… passado e futuro são abstrações mentais dos homens, mas não das criaturas da Floresta. Para estas, passado e futuro são apenas palavras vazias. O tempo é o senhor da vida, mas a vida só existe no presente. Esse paradoxo, deixo-lhes como legado de Rúben, que sempre soube viver plenamente o presente, mas não desvencilhou-se do passado…

Como não poderia ter uma lápide, Rúben optou por me incumbir dos escritos de seu livro, que nunca soube produzir. Não saberão meu nome, da mesma forma que não lhes revelarei como tive acesso às suas memórias, já que ele também nunca as revelou a mais ninguém. Existe um propósito para que eu lhes coloque este enigma, e Shakespeare deu-nos sua melhor contribuição em sua hermética profecia: “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia…”. Mas Rúben se superou ao deixar para mim mais esta curiosa e hermética frase: “Existe apenas um caminho para a Eternidade, e todos teremos de trilhá-lo. Alguns o percorrerão por muitas vezes, por não saber onde chegar, mesmo já estando lá… outros se perderão pelo caminho, e seguirão em círculo por toda a Eternidade, sem nunca compreender que também já a alcançaram… outros ainda prosseguirão diretamente para seu destino, mas nunca compreenderão por que chegaram lá tão cedo, e concluirão que a Eternidade jamais existiu. Pois saibam vocês que há, de fato, somente um caminho, e ele está na Eternidade.” Dizem que a Esfinge sussurra a todos os seus visitantes: “Decifra-me, ou te devorarei!”

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por João Carlos Figueiredo Postado em Crônicas

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