Tempos de Escuridão

Passa o tempo e passam, também, os seus familiares. Falam com ele… mas alguma coisa parece que mudou. É um quarto comum, e eles falam “que bom! ele já não precisa mais ficar monitorado o tempo todo! pode ficar numa cama!” Tiraram-lhe os aparelhos. Está lá, deitado na cama, igualmente inerte, completamente imóvel. Mas agora tem apenas uma perfuração na veia… um caminho que lhe conduz alimentos, medicamentos, soro… é a conservação da vida, em um momento estático, que não se transforma. E suas memórias voltam… e ele se lembra do tempo em que todos tinham medo.

E ele sente o medo, como sentira no passado. Não era medo; era pavor!… era terror!… era o desespero de saber que, de um momento para outro, ele poderia ser pego e levado para os calabouços da ditadura, torturado das formas mais cruéis, enfiando nele fios ‘vivos’, em todos orifícios de seu corpo, dando-lhe choques, batendo nele no ‘pau-de-arara’1, enfiando-lhe a cabeça dentro d’água até quase morrer afogado… pessoas gritando, chutando, violentando-o… e não era apenas ele; eram muitas pessoas, cada hora uma!… e ele se lembra de tudo, e sente a dor daqueles momentos intermináveis.

E parece que estar inerte aumenta mais ainda aquela dor, aquele sentimento… está no seu interior, e agora ele não pode fazer nada para fugir desse tormento. Ele está enclausurado dentro das masmorras da ditadura e sofre o terror de seus algozes!… sofre como nunca sofreu!… como nunca na sua vida sentiu!… porque agora, mais do que nunca, ele não pode fazer nada; nem se quisesse confessar, delatar seus companheiros, nem isso ele pode. E aquele sentimento de rancor, de ódio guardado no coração por tantos anos, contra essas pessoas que não são seres humanos, são monstros!… e que ainda o domina… ainda permanece arraigado em sua alma…

Uma sensação de impotência, de incapacidade de reagir… esse estado durou horas, talvez dias, quem sabe. Ele não sabe o que é matar o tempo, mas a sensação era muito pior do que a realidade que ele viveu! A dor era muito maior que ele… não sangrava, mas sentia o sangue se esvair de suas veias, correndo para o ralo. Aquelas imagens permearam todo espaço ao seu redor, e não percebia mais as pessoas que estavam lá. Voltou a sentir-se só… Talvez assim, alguma imagem Rúben pudesse transmitir aos outros, mostrando que ele tinha alguma consciência diante de tanto terror. Mas não… aos poucos se acalmava, e via que, ao seu redor, as pessoas conversavam as mesmas coisas, as mesmas banalidades, as mesmas inutilidades de cada visita, ora o tratando com carinho, e dizendo que sentiam sua falta, ora conversando trivialidades do seu próprio dia a dia, ora reiterando a necessidade de se tomar uma decisão a respeito do seu pai…

Suas masmorras não eram nas torres de um castelo medieval, mas dentro de sua alma… eram feridas não cicatrizadas, produzidas por vinte e um anos de ditadura feroz, medonha, cruel, que afetou milhares de famílias, órfãs de seus próprios filhos, não mortos, mas desaparecidos, como fumaça na escuridão… eram zumbis que vagueavam pelos caminhos obscuros daquele mundo que não era o nosso, como não era aquele o país em que nascemos, nem os soldados, igualmente filhos de brasileiros como nós, mas que guardavam na alma a crueldade de assassinos sanguinários… e Rúben conhecera muito de perto esse estranho país – prisão – sanatório onde seres humanos eram torturados até além dos limites da resistência heroica, inglória, injusta, até confessarem o inconfessável, muitas vezes mentiras que inventavam apenas para ter alguns minutos de clemência até voltarem os horrores cometidos em nome da ‘Pátria’!

E o que seria uma pátria, senão um território ocupado por gente, cercado por fronteiras que impediam o vai-e-vém de pessoas de outras ‘pátrias’ semelhantes, vizinhas, que passavam pelo mesmo clima de terror e ódio sem tamanho?… Esse pesadelo durou uma geração inteira, que se rebelou, que lutou, que desapareceu, que morreu sem ter trazido a paz para a Nação Brasileira, esse sim um conceito verdadeiro, repleto de significado e significâncias que acrescentamos ao nosso lar cada vez que enriquecemos nossas culturas, nossas tradições, nosso amor pelo povo que aqui vive e aqui morre feliz por ter nascido em um lugar tão belo e tão nosso!

Mas a Nação verdadeira é apenas uma Utopia, uma abstração do pensamento, um sonho nunca realizado, apesar de tantos que morreram em nome dessa esperança de ter, para seus filhos, aquilo que nunca conheceram em vida… Nação de todas as etnias…

A realidade é outra, muito diferente, a de um país cujos seres originários foram massacrados durante cinco séculos, reduzidos a reles animais, escravizados, esbulhados de suas culturas, seus valores, suas crenças, suas tradições, suas divindades, apenas para enriquecer os invasores, de cujas terras eles jamais ouviram falar..

A realidade é bem outra, onde as florestas e seus habitantes, animais das mais diversas formas, cores e belezas incomparáveis, foram dizimados por cinco séculos para satisfazer a ganância dos invasores, que se enriqueceram de ouro, sugando as riquezas verdadeiras que essa terra guardara durante milhões de anos.

Outra é a realidade onde as minorias se enriquecem ao empobrecer as maiorias, expurgando-as dos direitos mais fundamentais de qualquer ser vivo, de procriar, de se alimentar dignamente, de ter suas próprias moradias, de conviver em paz!

No entanto, tantos anos de escravidão, de desperdícios, de devastação, de emporcalhamento desse território tão belo e tão desprezado, justamente por aqueles que mais se locupletaram de seus tesouros, para proveito de tão poucos, como se essa terra tão rica não pudesse fazer felizes a todos os seus habitantes, de todas as etnias e crenças, de todas as origens e falares, de todas as memórias…

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1 ‘pau-de-arara’ – trave horizontal onde o prisioneiro, de olhos vendados, é pendurado de cabeça para baixo, entrelaçando as mãos sob os joelhos dobrados, amarrado pelos tornozelos e punhos, onde é submetido a choques elétricos, pauladas, banhos de água gelada e tortura psicológica.

Um comentário em “Tempos de Escuridão

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