A Bicicleta

Hoje percebo o quanto a bicicleta faz parte de minhas memórias; ainda pequeno ganhei uma de meu pai, e até me lembro de sua marca: Merckswiss (acho que era assim que se escrevia). Era pequena e azul, e eu me equilibrava nela com muita dificuldade, mal tocando a ponta do pé no chão, ao parar.

Foi nessa bicicleta que quebrei meu dente; uma árvore, em meu caminho, foi a culpada; e caí, batendo a boca no “guidon”. Mas nem por isso desisti de minhas duas rodas, que me acompanharam por toda vida. Cheguei a pensar até em ser um atleta, ou um artista, sei lá, contracenando com a “magrela” pela vida afora. Depois passou, e me esqueci da companheira, que ingrato!

Em Dracena, interior de São Paulo, aprendi a andar, a correr pelo aterro da estação de trem, em construção. Descíamos em grupo pela sua encosta em desabalada carreira e só mesmo o acaso nos livrava das consequências dos acidentes “inevitáveis”. Perambulávamos pelas ruas em bandos de crianças, meninos e meninas, sem preocupação; não havia o risco dos automóveis, pois a pacata cidadezinha tinha uma pequena frota de veículos, geralmente táxis, que andavam vagarosos pelas ruas de terra, contracenando com as charretes puxadas a cavalos.

Quando me mudei para Ribeirão Preto, certo dia assisti um maluco ficar dias seguidos girando em uma praça, sobre um tablado, na frente do Theatro Pedro II, demonstrando sua resistência e habilidades para o povo admirado! Havia poucas opções de diversão, e esses mambembes faziam sucesso pelo interior do Brasil. Decidi que, um dia, faria o mesmo e conseguiria bater o “recorde” mundial de permanência sobre o selim; a partir de então, passava horas girando com minha bicicleta em torno da velha mangueira lá de casa, deixando minha mãe desesperada com minhas loucuras.

Não bati nenhum “recorde”, mas desenvolvi minhas habilidades na “magrela”. Gostava de percorrer, em desabalada carreira, as ruas da cidade, descendo ladeiras e fazendo curvas “impossíveis”, até que me “ralei” todo numa queda no asfalto da avenida. Mas criança não tem memória, e poucos dias depois eu voltava a me aventurar nessas corridas inconsequentes.

Assim, a bicicleta fazia parte de minha vida, trazendo-me oportunidades de viver os dias sobre duas rodas. Às vezes desafiava meus primos a seguir pela estrada comigo até os municípios vizinhos, sem o conhecimento de minha mãe; como eles não iam, seguia sozinho. A bicicleta era minha companheira nesses momentos de solidão. Gostava de “pensar em movimento”, meditação dinâmica que cultivei ao longo de minha vida, e que foi de grande valia pelas dificuldades que tinha em conviver com os outros meninos de minha idade.

Acho que a bicicleta e, depois, a canoa, foram os paliativos de minha solidão. Nunca me importei muito com isso, pois acabei gostando de compartilhar meus pensamentos apenas com meus companheiros invisíveis, que povoaram minha imaginação. A bicicleta esteve sempre presente, e eu costumava “conversar” com ela enquanto andava sem destino, soltando as mãos, subindo no selim, fazendo pequenas acrobacias com esse meu instrumento de manifestação de meu poder pessoal, nunca compartilhado com a “turma” que não existia.

Ainda tenho uma bicicleta e, mesmo hoje, nos meus sessenta e um anos bem vividos, não perdi a mania de andar nos meus limites, correndo pelas ruas dessa pequena cidade do Amazonas, sem me importar com o que se passa em meu redor. Mas terei que deixá-la aqui, ao me transferir para a Capital do país, pois minhas bagagens já ultrapassaram de longe minha capacidade de transportá-las. Sentirei sua falta, mas logo encontrarei outra inseparável companheira, estou certo disso, e continuarei compartilhando com ela meus sentimentos mais profundos, discretos e silenciosos.