Um dia, ele ‘despertou’… ou melhor, se deu conta… não se pode dizer que ele acordou, porque já quase não dormia, ou, pelo menos, dormia apenas seus sonos intermitentes. Alternava as perdas de consciência e as retomadas, mas não tinha a percepção do dia e da noite, de acordar e de dormir, de repousar e estar em atividade, ter algum movimento… ele apenas percebia ou deixava de perceber… e, nesse momento, ele percebeu-se num ambiente estranho, praticamente desconhecido… parecia uma imensa montanha… cumes congelados, árvores altíssimas… e o silêncio da vida era tão grande quanto o silêncio da sua alma. Ele percebeu-se num deserto gelado, um lugar extasiante, uma paisagem ao mesmo tempo bela e transcendente. A solidão absoluta, porque ali nem almas existiam.
Nem a própria alma dele estava lá… apenas a percepção desse espaço aparentemente infinito… ele imaginara que talvez tivesse passado dessa vida para outro estágio de consciência. Sentiu até uma certa paz. Sentiu uma relativa tranquilidade. Não havia mais dor, até porque a dor que ele sentia não era uma dor física, era uma dor espiritual; mas, naquele momento, diante daquela imensidão toda de vazio, ele não sentia nem percebia a ausência das pessoas… será que lá estariam as mesmas pessoas, naquele quarto? Ele não sabia… era uma solidão sem dor. O vazio era mais do que uma solidão… era um vazio maior do que uma ausência… era o Nada!… aí ele se deu conta do que é ser ‘nada’. Até a paisagem gelada desapareceu.
Ele estava num limbo absoluto… sem luz… sem som… sem movimento… sem as sensações táteis. Era um estágio em suspensão, vazio… tão vazio, tão vazio, que ele era incapaz até de sentir. Não havia nada; era simplesmente a ausência de tudo. Pela primeira vez em toda sua vida ele percebeu o que é a ‘ausência de tudo’, diante dele, nessa imensidão. Ele pensou… finalmente, saiu um pensamento. Pessoalmente, ele ‘disse’ a si mesmo: “será que é ‘isso’ que havia antes de existir alguma coisa, antes do universo existir? O ‘nada’ é isso? O ‘nada’ é não estar suspenso em lugar nenhum? O ‘nada é o vazio absoluto? Pois é exatamente isso que estou sentindo…”
E ele já não pertencia mais a lugar nenhum. Ele não possuía nada em si mesmo, absolutamente nada… nada, pelo menos, que um ser humano fosse capaz de compreender… Naquelas elucubrações, ele mergulhou profundamente nesse vazio… nesse silêncio… nessa ausência… nesse ‘nada’. Por quanto tempo ele esteve assim sem nenhuma sensação, sem nenhum pensamento, sem nenhuma presença? É como se, no passado, em suas recordações, houvessem roubado dele um período da sua vida. Será que esse período vazio estivera sempre dentro das suas próprias memórias? Será que, em algum lugar do universo, existe esse vazio, onde você pode penetrar sem estar dentro dele fisicamente? Então, ele apercebeu-se de que existiam dois estados: o estado de ‘presença’ e o estado de ‘ausência’.
E assim, como que adormeceu… ao despertar, estava de novo de volta ao seu quarto, sozinho, abandonado pelas pessoas e pelos pensamentos… esse era agora seu ‘estado natural’, se assim pode-se dizer… ao seu redor, nada havia mudado: nem a cama, nem os lençóis, nem a estante de soro, nem o dreno da urina pendurado embaixo da cama, nem mesmo a escadinha ao lado da cama, completamente inútil em seu caso particular, nem aquele cheiro estranho de remédios e de ambiente esterilizado que permeava tudo ao seu redor, ou aquele lusco-fusco permanente, controlado pelas grossas cortinas e pela iluminação artificial que ele nunca percebera, pois seus olhos se fecharam permanentemente para o mundo exterior… enfim, estava lá, naquela redoma de concreto, da qual, provavelmente, jamais sairia com vida…
Rúben voltou à sua condição original, resultante de tudo o que vivera, agora interiorizada em sua mente complexa, depois de tantas confabulações. Agora sabia da existência do nada absoluto, do vazio que preenche o Universo, das conclusões que sua mente fora capaz de alcançar, mesmo estando imobilizado e inútil em sua reclusão involuntária e irreversível. Sabia que seu pensamento conservara a essência da vida, embora não pudesse chamar de ‘vida’ aquilo que estava acontecendo com seu corpo. Mas sabia também que essa consciência era muito mais completa e absoluta do que a vida física, material, dependente de movimento, de alimento, de um corpo real… mas o que seria ‘real’? Tudo aquilo que construíra sem mover sequer um músculo de seu corpo não poderia ser chamado de real?
E aquela ‘realidade’ ao seu redor, da qual não participava, na qual sequer era incluído por aqueles a quem tanto queria bem, e, no entanto, aos quais já não mais pertencia… qual seria a ‘verdadeira’ realidade em seu estado atual de consciência? Dois mundos para os quais não havia intersecção, já não era possível a interação… dois espaços contíguos, entre os quais cabia, no entanto, outro Universo, completamente estranho a seus entes queridos e a seus cuidadores…
Rúben, em sua solidão, sabia que ambos os universos estavam lá, mas não poderia transitar entre ‘seu’ Universo silencioso e o ‘outro’ Universo, ao qual jamais voltaria a pertencer… estava em uma espécie de ‘limbo’, semelhante em tudo àquele das religiões de seus pais, que ele renegara em vida, por julgá-lo impossível de existir…
Nesse seu universo particular não existiam outros seres; somente ele permanecia inerte, silente e imóvel em seu sarcófago, em sua câmara de morte, a contemplar o vazio que se formara ao seu redor. Era como se estivesse congelado nessa redoma invisível…
E com essas reflexões, adormeceu…
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