Rúben só parou de praticar aventuras quando sofreu seu primeiro ataque cardíaco1, que quase o matou, reduzindo à metade sua capacidade de bombeamento do sangue pelas artérias. Foi um incidente inusitado; caminhava solitário pelo bosque perto de sua casa quando teve uma revelação. Veio-lhe à mente um pensamento estranho: “a vida é uma sucessão de perdas… a cada passo no caminho sentirás que perdeste uma parte de teu ser… ainda que não compreendas esta verdade agora, tua vida cuidará de te ensinar”… Essas palavras chegaram claras à sua mente, como se alguém sussurrasse em seus ouvidos, mas não havia ninguém por aqueles lugares desertos, e já tinha se afastado muito de sua casa. Continuou a caminhar, intrigado com aquelas palavras, buscando compreendê-las em seu significado esotérico. Sabia que a vida era, de fato uma sucessão de perdas, assim como a morte de seus pais, avós, parentes e amigos mais velhos. Mas sabia que a mensagem não se restringia a tais perdas naturais, mas a algo muito mais profundo…
Foi nesse momento que sentiu uma forte dor no peito, algo como se fosse apertado por duas tenazes, que quase o deixavam sem condições de respirar. Sabia, por sua experiência como socorrista, que estava tendo um infarto. Sentou-se e se recostou a uma árvore. Pegou o celular e ligou para um de seus filhos, o mais velho, e relatou o ocorrido, dando sua localização pelo próprio celular, e aguardou a chegada de ajuda. O tempo parecia não transcorrer, tamanha era a dor que sentia. Tentava controlar sua respiração, mas era difícil inspirar, pois seus pulmões pareciam estar travados pela forte pressão no peito. Sabia que tinha pouco tempo para ser socorrido, pois já quase perdera a consciência, e seu temor era uma parada cardiorrespiratória, o efeito seguinte nesse tipo de evento. Aos poucos, sua consciência foi se apagando, até que a perdeu completamente. Daí, não sabia quanto tempo permaneceu nesse estado, até despertar em um quarto de hospital, uma UTI, onde estava sendo monitorado, com seu filho ao seu lado. Passaram-se vários dias até que retornasse para um quarto comum, e outro tanto para ser liberado para voltar para casa. Teve que ser submetido ao uma cirurgia de ponte safena para não morrer.
Por quase um ano esteve sob intenso tratamento, que acrescentara vários medicamentos à sua dieta, além de exercícios para fortalecimento muscular. Foram meses de tratamento, exames os mais variados para acompanhar a recuperação, e visitas constantes a seu cardiologista, que passou a ser seu novo amigo, conselheiro e orientador. Sua vida jamais voltaria a ser a mesma do passado. Agora sabia o significado daquela mensagem, que recebera instantes antes de sofrer o infarto. Sabia também que sua vida perdera parte do encantamento, e não poderia mais ter suas grandes aventuras, escalar montanhas, mergulhar em oceanos, remar… tudo se modificara em sua rotina de vida, mas teria que se adaptar a isso. A vida, realmente, cuidou de lhe ensinar sua mais difícil lição… Mesmo assim, depois de sua recuperação, continuou a fazer pequenas caminhadas e passear com os filhos pelos parques nacionais. Jamais se conformou com essa perda… dizia que parte dele havia morrido com a metade de seu coração. O curioso é que continuava se sentindo jovem, mesmo depois dos 65 anos de idade. Ainda fazia planos de escalar uma grande montanha, como o Aconcágua2, mas sabia que isso era impossível. Então, sonhava com suas aventuras, lia textos de outros grandes aventureiros, assistia filmes, tinha milhares de amigos aventureiros nas redes sociais, com quem, eventualmente, se comunicava e, através deles, recordava…
Agora que já não podia mais fazer grandes planos, vivia de seu passado, rememorando cada viagem, cada expedição, cada aventura praticada em diferentes lugares, sempre inesquecíveis. Porém, lamentou-se quando seus filhos deixaram de se aventurar pelo mundo… estava claro que eles só faziam essas atividades para agradar o velho, mas a rotina da vida acaba ceifando as melhores partes das nossas experiências. Algumas pessoas jamais fariam essas aventuras, seja por medo, por comodidade ou simplesmente por achá-las inúteis, mesmo sem nunca terem se lançado no vazio infinito das experiências extraordinárias, que a vida selvagem pode nos propiciar. Para a maioria das pessoas é impensável dormir numa barraca de tecido, no meio da floresta ou em uma clareira na montanha, comer alimentos desidratados, beber água da chuva, retirada de córregos, esterilizada com cloro ou através da fervura… seria absurdo para a maioria dos viventes ter um relacionamento tão próximo com animais que só existem em ambientes ‘hostis à civilização’… para eles, é inconcebível pensar que o ser humano evoluiu das cavernas e da idade da pedra, criou seu próprio mundo artificial, repleto de ‘tentações’ tecnológicas, para depois voltar à natureza e se equiparar aos trogloditas3 que habitam esse planeta há um milhão de anos.
Não sabem eles que essas fantásticas experiências de regressão espontânea à vida ancestral são importantíssima para resgatar valores esquecidos da vida humana, bem como para fortalecer o caráter, a autoestima e o respeito pela Natureza. Rúben chegara à conclusão, em seus devaneios, de que, se existe tanta maldade e violência nos dias atuais, é porque o homem perdeu o contato com o mundo natural. Por isso, também, é muito fácil para qualquer um destruir milhões de hectares de floresta para criar gado e plantar soja, para construir cidades cada vez mais tecnológicas e sofisticadas, ainda que esses espaços ‘esterilizados’ pudessem, no futuro, acabar com todas as fontes de água potável e destruir suas ‘riquezas’, tornando a vida impossível, pela absoluta incapacidade do planeta em sustentar dez bilhões de seres humanos… Para Rúben, esse mundo hipócrita, repleto de tecnologias e distrações da mente, não lhe pertencia.
Para ele, parecia-lhe muito estranho que, mesmo tendo havido tanto desenvolvimento tecnológico, ainda que a ciência tenha evoluído tanto nas mais diversas áreas do conhecimento, ainda assim exista tamanha desigualdade e injustiça entre os seres humanos, alguns acumulando tanta riqueza que não se consegue sequer imaginar, enquanto a maioria dos homens vive em plena miséria, no obscurantismo, no abandono e no sofrimento, sem alimento suficiente e sem os direitos essenciais para cuidar de seus filhos, enquanto poucos desperdiçam tamanha quantidade de recursos que seriam suficientes para acabar com toda fome e miséria deste mundo! Essa desigualdade, essa injustiça no mundo dos homens era incompreensível para quem não tinha nenhum apego a bens materiais, a cargos, à fama e à maioria das vaidades que todo ser humano cultivava nesse mundo de futilidades, atrativos tecnológicos e bens materiais.
Para Rúben, a vida se resumia ao pensamento e às atividades no mundo natural. Apreciar as belezas desse mundo era tudo o que fazia sentido para ele. Por isso, tornara-se calado e evitava as pessoas, pois já não se encaixava no mundo dos homens. Rúben nascera em uma pequena cidade do interior, e desde criança sentia sua afinidade com a Natureza e os animais que a habitavam. Em sua casa tinha um cão que seu pai batizara de Teco, sabe-se lá por que, mas que se tornara seu melhor amigo. Teco era um companheiro insubstituível para ele e para todos que conviviam naquela pequena cidade. Era parte da ‘turma’, seja quando faziam travessuras nas ruas de terra do vilarejo, seja quando se aventuravam nos matagais e brejos ao redor. Seu pai confiava nos instintos daquele animal, sabendo que ele protegeria seus filhos dos perigos naturais. E foi assim que aprendeu a caminhar pelo mato, próximo aos regatos, pelas encostas dos morros e pelas ruas tranquilas da cidade, por onde passavam apenas pessoas, carroças de boi, gemendo com o atrito dos eixos e as rodas de madeira, e charretes puxadas a cavalos. Lá, Rúben era feliz com seus amigos e seu fiel companheiro, o Teco.
Lá, naquela pequena cidade, ele cresceu e aprendeu a amar tudo o que fazia sentido na sua vida: as pessoas simples e generosas, os gatos, os pássaros, as árvores, os jardins floridos e o galinheiro, onde entrava todos os dias com o Teco, para alimentar os ‘penados’ e limpar sua sujeira, que era depois usada para adubar os jardins de sua casa, e seus pais generosos e sempre dispostos a lhe ensinar a viver. Lá viveu, de fato, toda sua infância e adolescência, sem as maldades que depois viria a conhecer na cidade grande, a qual não aprendera a enfrentar, e que lhe traria suas primeiras lições de como sobreviver em ambientes hostis, que não eram as matas e as florestas, nem os rios e os animais, mas sim o mundo dos homens. Mas o mundo que conhecera enquanto criança já não existia. Tudo mudou desde então, principalmente a mentalidade das pessoas, que se tornaram mais isoladas em si mesmas, em seu mundo tecnológico e digital.
As relações sociais se tornaram restritas a pequenos grupos de interesse, banindo a espontaneidade que existia nos primórdios do século passado. A convivência se transformara em um estorvo, um inconveniente indesejado para a maioria dos seres. Rúben tinha plena consciência disso, e procurava não se aproximar dos colegas de trabalho e nem mesmo de familiares. Sua vida se tornara introspectiva e limitava-se a seus estudos e reflexões acerca do sentido da vida e da missão dos seres humanos na Terra. Porém, com o infarto, recolheu-se mais ainda ao seu mundo interior. Aos poucos, deixara de caminhar, mesmo nos parques da cidade, pois isso não lhe trazia mais prazer. Sentia que a vida se esvaía com o sangue que pulsava em suas artérias. Era-lhe penoso até sair de casa. Assim, foi se tornando um velho solitário e desencantado com tudo aquilo que construíra no passado. Já não se importava sequer com a Natureza, que tanto cuidara em seus tempos de aventura. Para Rúben, o destino da Terra estava traçado, na medida em que as florestas eram devastadas, os rios desapareciam, os animais selvagens eram extintos e as belezas naturais eram substituídas por grandes cidades e imensas monoculturas de grãos ou pastagens para o gado…
1IAM – Infarto Agudo do Miocárdio – nome científico do processo que ocasiona a parada cardíaca e que, muitas vezes, nos leva à morte. A sensação do infarto varia com cada pessoa, mas alguns sintomas são comuns: intensa dor no peito, como se algo comprimisse o peito, impedindo o coração de pulsar; ansiedade pela sensação clara da possibilidade da morte; incapacidade de tomar qualquer atitude, mesmo de se locomover ou entrar em contato com outra pessoa.
2Aconcágua (pronunciação espanhola: [akoŋkaɣwa]) é a montanha mais alta fora da Ásia, com 6.961 metros de altitude, e, por extensão, o ponto mais alto, tanto no Hemisfério Ocidental quanto no Hemisfério Sul. Está localizado na Cordilheira dos Andes, na província de Mendoza, Argentina, e está situado 112 quilômetros a noroeste de sua capital (Mendoza). O cume está localizado a 5 km da Província de San Juan e a 15 quilômetros da fronteira com o Chile. [Wikipedia]
3A palavra Troglodita costuma designar os habitantes de cavernas ou de rochas, falhas ou grutas naturais nas falésias, em tempos pré-históricos. A palavra vem do latim, trōglodyta (‘povo que habita cavernas’), e do grego antigo, τρωγλοδύτης. [Wikipedia]
Pingback: Sumário | NA IMENSIDÃO AZUL