Madrasta Solidão

Vejo-a com meus olhos de menino
Encantado por sua dedicação
E nada fiz por merecê-la
Simplesmente existi

Vejo-me pelos seus olhos pequeninos
Embaciados pela vida que passou
E nada fiz por recompensá-la
Pois só cuidei de mim

Enclausurada em sua solidão sem fim
Não a encontro mais perto de mim
E nada posso fazer por revivê-la
Senão fechar os olhos

…e adormecer também…

Estranha Cidade

Não pertenço mais a esta cidade
Mas algo me traz de volta aqui
Venho apenas para reviver
Os sonhos que algures deixei

Meu pai talvez soubesse a razão
Porém, ele se foi e me deixou vazio
Levou consigo nosso castelo de ilusão
E me escondi em outros pesadelos

Entreguei-me ao prazer de conduzir
Almas, seres humanos, gente como eu
Perdidos nas incertezas do amanhecer

Mas não existe Amanhã no Ser…
Por isso, talvez, perambulei por aí
Buscando, quem sabe qual motivo
Para perseverar, ainda que disperso
Em pensamentos que não são meus

Como posso refletir se já não tenho paz?
E, no entanto, continuo aqui…

Amazônia

Estranho mundo perdido no passado
Entristecida gente deixada no caminho
Inebriada pelo falso brilho da civilização

Não são brancos, pardos, negros, índios…
São só caboclos, despidos de identidade

Chamam-se ingenuamente de parentes
Como a dispersar assim as desavenças
Deixadas pela dominação caucasiana

Gente sem passado, cantam suas ilusões
Fingem preservar, assim, as tradições

Mas elas não existem mais… se foram…
E não haverá quem as resgate do passado
E viverão assim na eternidade que não há…

Sem destino

Quisera não compreender a realidade
Iludir-me, como o fazem todos os demais
Fingir que ainda acredito na humanidade
Que ainda existem esperanças nesta vida

Mas não sou assim: perdi a ingenuidade
E sei que um dia tudo encontrará seu fim
E que não é possível salvar este planeta

Porém, já terei ido quando isso acontecer
E o mundo se ocultará de vez nas trevas
E os homens padecerão os seus pecados
Pagando o preço do desprezo pela vida

E não haverá mais florestas, flores, animais
E o que restará serão somente os desertos

Mas, ainda assim, existirão os homens
Enclausurados em seu planeta morto
E chamarão a isso o Grande Progresso
E cultuarão suas próprias invenções
Sem perceber que nada valem de per si

Talvez migrem até para outros mundos
Colonizando escravos, destruindo tudo
Como fizeram por milênios por aqui

Talvez apenas desapareçam, um dia
Sem deixar rastros, nem lembranças
E se reintegrem ao pó da Eternidade…

Sons Inesquecíveis

Ouço o silêncio obscuro de meu interior
Que os sons deste mundo já não ouço mais
Parecem-me ruídos, gritos esganiçados,
Ofendem meus ouvidos já cansados

Ouço o som do Universo ao meu redor
Meu pai diria: “ouça o som das esferas”
E vejo os mundos a rodopiar nos céus
E o brilho inconfundível desses astros
E o som inaudível da luz cortando o éter

Ouço o murmúrio das águas pelas pedras
E sinto a paz que já não existe mais

Ouço o burburinho das crianças
Algazarra feliz, descontraída e bela
Cantigas ancestrais trazidas da lembrança
Bailam em roda, despreocupadamente
Ainda não perderam a pureza dos anjos
Nem se tornaram perversas como os pais

Ouço o farfalhar das folhas na floresta
E o sublime cantar dos passarinhos
A chamar suas fêmeas, a tecer seus ninhos
Percebo a sombra dos grandes animais
E suponho suas vozes, a rugir, medonhos…
A espantar inimigos… a impor domínios…
Apenas sons imaginários… nada mais