Cena 1 Um homem atira uma criança do sexto andar de um edifício depois de estrangulá-la. A polícia é chamada e a imprensa se movimenta para informar a população a respeito do crime bárbaro. Repórteres buscam a melhor cena e o melhor ângulo para aumentar suas possibilidades de IBOPE… quem sabe até um prêmio “Pulitzer”!?Cena 2
Durante mais de 30 dias a imprensa persegue os possíveis culpados, pai e madrasta da menina, tentando mobilizar a população para um linchamento virtual. A polícia e o promotor entram em cena e alimentam a imprensa com informações de indícios e evidências do crime, quase todos verdadeiros, e análises periciais baseadas em vestígios encontrados na cena do crime. Os pais são presos sob os gritos histéricos da população, já convencida da autoria do crime, embora o indiciamento ainda nem tenha sido concluído.
Cena 3
O casal, pai e madrasta, são soltos por um habeas corpus impetrado pela defesa, perplexa diante das repercussões nacionais do caso. Todos os noticiários, dia e noite, de hora em hora, repetem à exaustão a história de Isabella, estampam em primeira “página” todos os detalhes do crime e invadem a privacidade de quem quer que esteja, direta ou indiretamente, relacionado ao assassinato do Edifício London. Em nossas mentes permanece a imagem do pai, conversando tranquilamente com um policial no jardim, explicando sua versão do fato, a poucos passos do corpo inerte de sua pequena filha morta…
Cena 4
É feita a “reprodução simulada” do crime, assistida sob os mais diversos ângulos pela maior plateia do país. Praticamente todos os lares acompanham a atrocidade, observando em detalhes o estrangulamento, a cena da menina atirada da janela, representada por uma boneca em tamanho natural, o corpo que jaz sobre o gramado do jardim do edifício, tudo acompanhado de análises de repórteres e interpretações de especialistas, advogados e juristas.
Cena 5
A “reprodução simulada” do crime é criticada, assim como os pronunciamentos feitos pelas “autoridades competentes” nos últimos 30 dias, evidenciando a fragilidade das “provas” e alimentando a defesa com a munição dos muitos equívocos praticados pelos delegados. Os procedimentos são didáticos, e cada cena é repetida à exaustão, apesar dos erros evidentes até para um público leigo…
Cena “n + 1” e subsequentes
O casal foi indiciado por homicídio doloso triplamente qualificado. Trata-se de um crime hediondo, para o qual nosso código penal não tem uma punição adequada! No máximo, eles ficarão “hospedados” na cadeia por 10 anos; depois haverá a progressão da pena para regime semiaberto e, finalmente, para liberdade condicional. Depois, a pobre Isabella terá sido esquecida, não somente por nós, mas também por seus algozes, e entrará para a história apenas como mais um número nas estatísticas policiais…
A imprensa ainda alimentará os noticiários com a morbidez desse crime enquanto os índices de audiência justificarem os “investimentos” na manutenção de uma enorme equipe de repórteres, fotógrafos, cinegrafistas, entrevistadores e entrevistados.
Enquanto isso, ninguém mais se lembrará da pequena menina, cuja vida foi interrompida pelo brutal assassinato… o que importa o destino dessa criança, se as emissoras de televisão, as rádios, os jornais, as conversas de botequim, as reuniões sociais já se alimentaram das horas, dos dias, das semanas de discussões sobre quem vencerá a demanda judicial? Promotoria, delegados, investigadores, analistas criminais de um lado, advogados de defesa, acusados e seus familiares de outro, disputando um jogo cujo objetivo maior é o entretenimento da população, a despeito do próprio crime em si mesmo, ou de sua vítima, a criança morta!
Pois é assim o nosso Big Brother, Brasil!
E para euforia dos fanáticos contendores desse “jogo da verdade”, na Áustria, um homem de 73 anos é descoberto depois de manter sua própria filha refém e escrava sexual por mais de 24 anos, dela gerando 7 filhos! É “muita sorte” da imprensa! Quanto mais maldade, quanto mais crueldade, melhor!
E uma criança se transforma no ícone social da crueldade humana, desprovida de qualquer sentimento de compaixão e solidariedade! A ela já não importa mais o tempo, pois sua vida foi ceifada na mais bela fase de sua curta existência… E, como mártir, será “vingada”, ainda que para isso se punam inocentes… não mais importa se pai e madrasta são, de fato, os culpados: eles “”precisam” ser culpados para que todo esse aparato de tecnologia da comunicação se justifique, para que todo esse ódio canalizado se justifique, para que todo investimento da imprensa para a cobertura de cada pequeno detalhe de cada cena se justifique, para que nossas consciências não se sintam envergonhadas de tamanha insensibilidade e violência, maior ainda que o próprio crime, que já se foi na memória coletiva de nossa sociedade… porém, sendo culpados, pai e madrasta já terão sido julgados e condenados pela opinião pública manipulada pela imprensa!
Viva a imprensa livre, democrática e independente!
Viva a nossa magnífica sociedade de consumo, ainda que esse consumo seja apenas da dor de uma família cujo ser mais inocente foi vítima da barbaridade, da crueldade que existe em cada um de nós!
Junho de 2008: a novela sórdida continua…
Para deleite da imprensa e de todos os que se comprazem com as mazelas humanas, mais um lamentável episódio incendeia novamente esse crime mal resolvido: agora, o policial que conversava com o pai da menina na cena do crime se matou em decorrência de denúncia de pedofilia. Novas suspeitas de outras possibilidades de desfecho desse drama fazem o assassinato voltar às páginas da imprensa… até quando??? Até que todos se saciem na fonte da maldade e da maledicência… até o momento em que um tribunal decida, sem provas cabais, se o casal matou ou não a sua filha de forma cruel e sem justificativas… até que uma novela virtual conquiste o interesse do público e traga novas revelações sobre a sordidez humana em todas as suas variações e matizes…