Já se passaram quase 10 anos desde que estivemos lá, eu e minha filha Luciana. Não sei se parece uma eternidade, ou se foi ontem… a relatividade do tempo, ou de minha consciência, inibe o meu entendimento. Ainda sinto as emoções e perplexidades diante de tanta beleza! Jamais havia sequer imaginado a possibilidade de existirem águas tão cristalinas e plenas de vida!Saímos de São Paulo à noitinha, acompanhando Vera, a dona da pousada, e seu motorista (já esqueci seu nome…). Mal entramos na estrada e um pneu furou… não havia estepe! Mal sabíamos que este evento se repetiria durante as 36 horas seguintes que durou a viagem de 1.200 km! O veículo era uma Van Hyundai, em estado de decrepitude avançada…Quanto mais nos afastávamos de São Paulo, mais difícil se tornava encontrar pneus que servissem nas rodas daquele carro, fora de padrão! Sim, pois os pneus do carro estavam todos “carecas” e remendados, o quanto fora possível fazê-lo no passado! Aos poucos, nosso entusiasmo pela viagem foi se extinguindo, sumindo no cansaço da viagem, sem fim previsível!
Chegamos às margens do rio Paraná na manhã do segundo dia, e ainda faltavam muitos quilômetros de estrada “asfaltada” a serem percorridos! Dois sulcos marcavam os trilhos em que os veículos deviam se acomodar na estrada, criados pelos caminhões lotados de gado e gravados no asfalto derretido pelo calor escaldante daquelas plagas distantes da “civilização”.
Impressionante a largura do rio Paraná! Quilômetros de distância de uma margem à outra! Minha memória se esforçava por trazer de volta minha infância, passada nas proximidades desse rio. Morei em Dracena por sete anos, mas já não me recordo de muita coisa… mesmo a travessia de balsa pelo rio, a hospedagem em um hotel de madeira sobre palafitas, a tribo indígena do outro lado do rio, em Mato Grosso (que ainda não era do Sul), mesmo essas lembranças eram tênues e esmaecidas pelo tempo…
Do outro lado do rio almoçamos peixe em um restaurante à sua beira… passou-se parte do cansaço, embora ainda tivéssemos muito chão a percorrer naquele veículo desmazelado. As fazendas à beira da estrada mostravam estranhos montículos, centenas deles, de cupinzeiros, alguns de quase dois metros de altura! Mais parecia uma paisagem do deserto, abandonada por seus donos desleixados.
Muito gado Nelore, acinzentado e pachorrento, ruminando seu capim, sem se preocupar com o tempo que tanto nos incomodava… nossa ampulheta já fora virada várias vezes, ficáramos a olhar para aquela areia a se esvair pelo pequeno orifício em nossas mentes…
Depois de outras tantas paradas, chegamos, por fim, a Aquidauana… já era tarde… Fomos à casa da irmã de Vera, ambas com aparência indígena, simples e gentis conosco, fato que nos cativou e mitigou o cansaço e o desânimo da viagem interminável!
Comemos um biscoito enorme, meio duro, meio adocicado, com um nome esquisito que eu não guardei, e que, apesar da aparência e do gosto estranho, apascentou a fome de nossos estômagos vazios… engolimos alguns com um suco ralo e sem gosto… o que mais queríamos é partir depressa daquela cidade feia e sem graça, rumo ao nosso destino: Bonito!
Chegamos a Bonito já noite feita e adiantada, cansados, sem saber ainda como era aquele lugar, pois só víamos vultos de árvores, e uma seriema, pousada sobre o pilar de uma cerca, à beira do que parecia ser a ponta do Pantanal… e era mesmo, nos disseram!
A pousada simplesmente não existia! Apenas dois chalés semiacabados e geminados, em uma fazenda cujo tamanho não sabíamos ainda, e uma tapera que pretendia ser uma cozinha improvisada. Mas isso não nos incomodou, de fato. Nossa expectativa renascera, sem uma causa aparente, movida pela imagem mental que fizéramos daquele lugar encantador! Adormecemos…
No dia seguinte fomos à cidade de Bonito, constituída de uma rua principal, asfaltada, e umas poucas travessas de terra batida, assim como eram todos os caminhos da região. Algumas lojinhas, umas poucas agências de turismo, dois ou três restaurantes, a prefeitura, a igrejinha, a pracinha, um monte de orelhões com formato de tucanos, araras e outros bichos locais… e só!
Durante nove dias fizemos passeios que ficaram para sempre em nossa memória!
Entrei pela primeira vez em uma caverna; na verdade, uma gruta, do Lago Azul. Eram cerca de trezentos degraus de terra amarelada, escorregadios e lamacentos, que davam na beira do lago… que azul absurdo! Parei estarrecido diante daquela beleza indescritível, boquiaberto e apalarmado diante de um espetáculo que iria determinar a minha vida futura: já não era mais o mesmo depois daquele milagre da Natureza! Não sei por quanto tempo fiquei a admirar aquelas águas, as formações calcárias, que depois viria a conhecer como estalactites e estalagmites, apontando-se umas às outras, como se buscassem se tocar no tempo infinito…
O guia pediu que nos deixássemos levar por aquelas sensações que não cabiam dentro de nós… sentamo-nos à beira do lago e, lentamente, movemos nossos olhos para cima, para a abóbada pontilhada de calcário petrificado… a sensação era de uma imensidão ainda maior… uma comunhão com o Universo, uma Iluminação, Satori, Nirvana, sei-lá-o-que… puro êxtase e encantamento!
À tarde fomos para o rio Formoso… passeio de barco inflável, uma espécie de rafting light… percorremos um trecho do rio deslizando por suas águas tranquilas e serenas até à beira de uma queda d’água, onde despencamos! Uma corredeira, outra e mais outra, e a pequena aventura se tornou emocionante! Caímos, finalmente, em um lago enorme, cercados pela mata virgem onde tucanos e araras azuis passavam em casais por sobre as nossas cabeças… estávamos dentro de uma história, de um filme, de um cenário!
Saltamos nas águas cristalinas e deliciosamente geladas! Nadei por alguns minutos, olhando extasiado aquela paisagem…
No dia seguinte fomos ao rio do Peixe. Chegamos à fazenda muito bem cuidada que, no passado já fora produtora de gado Nelore. Agora, o dono só tinha umas poucas cabeças de gado e vivia da exploração do ecoturismo! Fizemos a trilha às margens do lago, caminhando sobre um tablado de madeira, construído para proteger a mata ciliar das pegadas dos turistas. A cada trecho percorrido havia entradas que davam na beira do rio, onde se podia nadar, entrar debaixo de uma cachoeira, atravessar de tirolesa…
Mais um dia, outro passeio fantástico! Estávamos no Aquário Natural. Um trecho de rio onde se podia flutuar com roupas de neoprene, e que iniciavam em um pequeno lago repleto de tanta vida submersa que nem dava para descrever ou identificar! Depois saímos a flutuar, olhando com máscara e snorkel a paisagem tranquila sob a superfície… algas se balançavam com o nosso movimento e o mover das águas do rio… éramos acompanhados de um cardume de piraputangas e dourados, enquanto surubins repousavam sossegados no leito do rio. Vimos uma sucuri atravessar por baixo de nós, de uma margem a outra…
O último passeio foi nossa despedida: rio da Prata! Uma fazenda lindíssima, a trilha sob as árvores, a flutuação no rio gelado e maravilhoso, com diversas espécies de peixes, prevalecendo as piraputangas, os dourados e os pacus, peixes abundantes em Bonito. Almoçamos na fazenda, acompanhados de bichos de toda espécie, e um bando de papagaios espertos que, em voos rasantes, roubavam nossa comida, como parte do divertimento natural propiciado por aquele paraíso das Bodoquenas!
Ainda hoje eu me lembro dos detalhes daquela viagem, das sensações, das pessoas boas e simples do interior do Brasil!